No dia em que fui vender a aliança, ela passou por mim sem olhar. Falava ao telefone. Não a identifiquei de primeira. Só me lembrei mais tarde. Pouco antes, outra lembrança havia me trespassado, a de ter comprado uma joia para celebrar a eternidade de algo que sempre soube que findaria.

A peregrinação para vender o anel, ao menos, rendeu a inserção no fabuloso mundo dos compradores de ouro, com seus ritos e linguagem próprios na incessante busca por avaliar e adquirir qualquer coisa amarela, brilhante e rentável ao menor preço possível. No dia em que fui, alguma coisa entre a baixa do dólar e a guerra jogou a cotação do minério lá pra baixo, para o meu azar.

Com o objeto no bolso, estive primeiro nas grandes lojas, que me soaram desvantajosas e impessoais. Abandonei-as no segundo estabelecimento, na Presidente Vargas. Me senti intimidado e saí rumo às ruas do comércio em busca de fortuna, tal qual um garimpeiro que havia bamburrado em Serra Pelada.

A primeira placa avistada, olhei com desconfiança. Embaixo dela, estava um grupo, no qual se achava um velho. Estava sem camisa, a barriga pendente e as mãos nas cadeiras a dar descanso a uma provável hérnia de disco. Ele me olhou com seu olhar de rato e me disse o preço.

- Cuidado, que nem todo mundo pesa e paga o preço justo.

-Sei, sei.

O velhote e os homens comentaram algo inaudível atrás de mim. Deveria ser algo sobre a minha roupa ou meus modos. Um sujeito de óculos em busca de vender um punhado de ouro.

- Se for de garimpo, pago até 250! - Me respondeu outro idoso do ramo, mais adiante.

Este estava numa portinhola de compra um pouco mais respeitável, numa esquina cercada de joalherias modestas e negociantes de tesouros usados. No entanto, a boa impressão se desfez quando adentrei o pequeno comércio. O escritório dele era debaixo de uma escada, aos fundos do vão da entrada. Teto baixo, claustrofóbico, caótico e sujo. O homenzinho piscou os olhos quando mostrei a peça.

- Tem mais de 8 gramas aí.

- Ah, é? Então, espera.

Ele trocou a minúscula balança de precisão ao saber que eu conhecia o peso do anel. E deu uma risadinha.

- É de garimpo?

- Que nada! Isso foi de um casamento que tive... não deu certo, não.

- Ah, mas vai dar uma hora. Tu és novo. Quantos anos?

- Já passei dos 40, bicho.

- Porra, pensei que tinha uns 30.

- Quem me dera.

Ele pesou. O mostrador apontou um peso menor do que nos outros locais. E começou a ralar a aliança na pedra de toque e depois pingar o ácido nítrico.

- Tá vendo, tá vendo?

- O que?

- Não fica. Quando o ouro é bom, ele não sai da pedra de jeito nenhum.

- Olha, esse ouro é 18 quilates. Comprei em Altamira. Vem dos garimpos de Itaituba, provavelmente.

- É, mas não presta, não. Veja, veja! És de Altamira?

- Não, morei lá uns quatro anos. Faz tempo...

Ele continuou a realizar o teste repetidas vezes. Raspava na pedra, pingava o líquido, raspava na pedra, pingava o líquido, raspava na pedra, pingava o líquido e, assim, sucessivamente. Já estava estressado com a conversa e a repetição do procedimento.

- Ainda precisa raspar mais uma vez?

- Não aparece a pureza na primeira, não. Isso é uma arte, meu filho, uma arte!

- Olha lá, hein?

- Sei do que tô falando, rapaz.

Não quis fechar negócio, por desconfiança. Cumprimentei o velhote com tapinhas nas costas e saí rumo a uma nova tentativa. Dei de cara com um ponto fechado e outro me causou certo pavor pela aparência mal assombrada. Passei reto. Entrei em um terceiro, similar a um antiquário, com santos, altares, crucifixos. Uma senhora com cara de beata apareceu para me receber.

Tirei o anel da bolsinha de veludo e mostrei. Os olhos da mulher faiscaram de surpresa.

- Nossa que aliança grande! É tua mesmo?

- É, sim. De um casamento que terminou.

Pus a joia e estiquei a falange para ela perceber como encaixava bem.

- Solteiro? Que dedo enorme, grosso, bonito, o seu. – E segurou meu anelar com delicadeza.

Ri sem graça e tirei a mão lentamente.

- Se tivesse vindo na semana passada, a cotação estava bem melhor. Agora está nesse preço e digo pra ti que não vai subir tão cedo. Sabe como é, a Ucrânia, o petróleo, o dólar...

- Ah, é? Interessante. - Fingi sem entender nada.

Ela fez uma boa oferta, mas preferi continuar a procura.

Embora tenha me surpreendido com os valores, para mais do que imaginava, comecei a ambicionar. Deve ser assim com os homens contaminados pela febre do ouro, refleti; ficam doidos sempre atrás de mais pepitas, mais dinheiro, largam suas famílias, se embrenham nas matas, nas beiras de rio, apostam tudo que têm, se envenenam de mercúrio, matam os rios e os peixes, cometem genocídios e se matam por pura ganância.

À frente, mais uma plaquinha. Desta vez, estava num cavalete em fronte a uma ótica modesta.

- É com o seu Davi. Vou chamar.

Ele apareceu. Gordo, grande, poderia ser um Golias. Tinha uma boa simpatia comedida e de bom tino comercial. Parecia que a compra e venda de ouro era uma atividade extra, um bico. Me levou até os fundos da loja.

- Só de olhar dá pra ver que o ouro é bom. Sabe como a gente testa também? Pelo barulho que cai no chão. Se for um barulho seco, o ouro tem qualidade.

E Jogou o anel em cima da mesa, de uma altura considerável.

Poc!

Era um ruído pesado, sem sobras, sólido.

Fez o tal do teste, rápido. Ralou só um pouquinho, não igual ao gato velho que queria depreciar meu tesourinho. Lançou a melhor oferta. Fechamos ali na hora e um Pix selou o acordo. Saí com minha pequena fortuna e menos uma tralha.

Tive a sensação de que agora, definitivamente, a vida daria certo. E foi quando estava de olho no futuro que ela ressurgiu no meu caminho, ao lado da Igreja de Santana em direção ao antes conhecido como Buraco da Palmeira.

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Há anos não a via e recordei do dia em que a conheci. Nosso primeiro encontro remonta uma cena analógica, quase extinta hoje em dia: dois estranhos que se viram em uma praça e pararam para conversar. Sem demora, estávamos engalfinhados um no outro, nos muros do colégio Salesiano, no breu da noite. A partir daí nos víamos sempre às quartas, mesmo horário. A falta de um telefone na época nos obrigou a esse trato secreto. Até que um dia não fui e nos desencontramos quase para sempre.

Dez, vinte, quase trinta anos e uma vida no meio até o episódio do Comércio.

Pude reparar que as escleróticas dela estavam avermelhadas e me parecia ter desenvolvido pterígio. O olhar diligente de sempre estava lá e o cabelo mantido na altura dos ombros, como na época dos encontros.

Como um lapso na realidade, ela começou a aparecer após a venda do anel. Em vários lugares, como uma visagem, uma falha na Matrix. A enxerguei em uma festa na Cidade Velha, em um dia de feira entre frutas, em uma calçada pelo Umarizal e, em outra oportunidade, atingida pela chuva embaixo de uma marquise na Almirante Barroso.

Estranhei a frequência desse avistamento, como se o passado estivesse a dar sinais insistentes. Cheguei a pensar na aliança de ouro como uma rolha que segurava o tempo dentro de uma garrafa, presente, passado e futuro, agora despejados de qualquer jeito, como leite derramado, a mesclar espaços e personagens de outras décadas sem nenhum critério. É bem provável que ela não tenha reconhecido o homem que me tornei, pensei.

Na derradeira vez que reapareceu, havia chovido e eu estava dentro de um carro. Pude me demorar a olhá-la sem ser notado. Estávamos perto da Basílica. Me senti um invasor por ela não poder revidar toda minha indiscrição, a de quem avalia o outro secretamente a partir de uma imagem de tantos anos com o privilégio de não ser notado.

Éramos, agora, dois estranhos que zanzavam nessa cidade do tamanho de um ovo de osga e se esbarravam por mera coincidência. Certamente, ela não se lembrava de absolutamente nada daquele comecinho de vida, da pressão contra o muro na escuridão, da minha ânsia e encantamento.

O carro arrancou e continuei a olhar até que ela sumir imersa na mesma bruma em que esteve desde que me virou as costas pra mim naquele já esmaecido maio de 1996.

Anderson Araújo é escritor e jornalista da equipe do DOL e publica sempre às quintas.

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Foto: Arte: Emerson coe e Thiago Sarame

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