Era 1995.

O telefone tocou.

Havia mais de uma semana tocava no mesmo horário, perto das onze da noite, a casa já silenciada.

Hoje não é possível reproduzir a sensação que o trinado provocava em quem esperava com ansiedade uma ligação.

Não, você, acostumado ao celular, não entenderia.

O coração palpita perto de morrer, os músculos retesam, os olhos brilham, o corpo, sem escapatória, se joga em direção ao aparelho. As mãos se atrapalham, nervosas, com o fio e o auscultador e qualquer movimento em falso pode desligar a chamada.

Alô?

Tu, tu, tu, tu, tu.

Não tinha tanto tempo que a telefonia havia chegado em casa. Naquele tempo, a invenção de Graham Bell ainda era um privilégio de poucos. A linha era um bem invejável e custava o preço de um lote pra construir uma boa e ampla casa. Para os pobres, sonho distante.

Alguns até conseguiam adquirir, mas a grana curta não suportava a conta no fim do mês. Nas alturas sempre. Ter a tal linha era status tão elevado que os compradores, de imediato, viravam acionistas da companhia telefônica.

Imagina. Você todo dia na fila do orelhão (alguém já usou um orelhão?) e, de repente, torna-se acionista. Acionista. Era como se, do nada, você brotasse na praia de terno e gravata.

Em um desses milagres da microeconomia doméstica de contenção eterna, minha mãe adquiriu as ações da TelePará, o aparelho e a mesinha.

Sim, em lugar privilegiado, da sala de estar, à vista de todos, ele repousava em uma mesa, com direito a banco acoplado, ternamente, forrada com um indefectível pano de croché. Minha mãe sempre foi caprichosa.

Naquela noite, a campainha soou de novo.

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O som não era o metálico estridente da sineta minúscula enlouquecida dos velhos aparelhos de baquelite, pesados e escuros, disco giratório com números para discar. O nosso vinha eletrônico, elegante. Lembrava os escritórios de novela das nove, macio com uma língua sensual a badalar no céu da boca. Cor de creme, design moderno, teclas quadradas e seus pulsos suaves.

O músculo cardíaco aos pulos, a respiração já ofegante, deixei a língua badalar até a terceira vez e tirei do gancho.

- Alô.

Silêncio.

- Todo dia isso.

- …

- Não vou mais atender.

- …

- Tchau...

- …

- Quem tá falando?

- …

- Todo dia essa porra.

- Quando estava prestes a desligar, a voz do outro lado respondeu.

Uma mulher.

Uma voz firme, limpa, segura, suave. As que os fonoaudiólogos adorariam. Ossatura equilibrada, fossas nasais límpidas, sem resquícios de pigarro, uma carícia aos ouvidos. Deveria ter uns 20 e poucos anos.

Gaguejei.

Ela disse macio que há dias queria me falar. Há muito me observava pelas ruas, em segredo. Me via e suspirava, me acompanhava com os olhos, me comia à distância. Ah, aquela voz doce e contínua, cristalina, de cantora, de palestrante, de professora, de corretora de imóveis, de vendedora de carros, de um telemarketing do céu. Era eu, muito antes de usarem a expressão, um crush. Passou umas meia hora nessa sedução.

Impossível.

Havia algo errado.

Meu perfil não batia.

Era, então, um adolescente espichado, a cara já furada pelas espinhas, mal ajambrado, torto, uma expressão de faminto, feio mesmo. Estava naquela fase em que a infância passou e você já lida com aquele corpo, pelos, hormônios, peso do mundo, mas não sabe andar direito, nem qual penteado usar, nem como se vestir. Mal se expressa, porque a voz variava entre um falsete de Pablo Vittar e um grave de Nelson Gonçalves.

- Não, moça. Você está me confundindo. Está errado o número que discou. Não sou essa pessoa. Deve ser engano.

- É você, sim, ela insistia. - Na voz, uma insinuação sensual com um riso maroto no final e o uso do você.

- Não sou.

- É, sim.

- Não sou.

- Estou dizendo que é.

- Hum. Ok, e agora?

- Quero te ver.

- Sério?

Desta vez não só Gaguejei. Tremi também. Veio um frio não sei de onde. Em Belém do Pará. Repito: em Belém do Pará, um friozinho.

Então, combinou.

- Pracinha Eduardo Angelim. Sete da noite. Segunda. Sem falta.

- Sem falta?

- Sem falta.

Desligou.

Não é possível.

Se eu tivesse um bina…

Talvez você não saiba. Mas, o bina é uma aparelho que mostrava o número de quem ligava. Só os ricos tinham.

Foram uma noite e mais três dias de aflição.

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Na segunda, tomei o melhor banho dos últimos dez anos. Melhor só se minha mãe entrasse no banheiro com um escovão. Pus minha calça cargo cor de creme passadinha e minha camiseta branca. Escovei os dentes e passei fio dental duas vezes — a gengiva já quase em carne viva. Condicionador mal tirado, caprichei na linha do penteado. Hoje chamariam cabelinho na régua. Um toque final: a colônia Acqua Fresca da vovó.

Quinze pras sete estava na praça como quem vai à missa.

Quase ninguém por perto. Só os marmanjos do futebol em confronto eterno na quadra e, embaixo da mangueirinha, os bêbados de sempre com a cara inchada, a tremedeira, os olhos empapuçados e aquele riso de quem encontrou deus na garrafa de Tatuzinho.

Busquei o banco estratégico.

Comecei a me arrepender de ter chegado cedo, porém, continuava tudo sob controle. Talvez se tivesse vindo pontualmente. Mulher sempre atrasa, pensei.

Cinco minutos se arrastaram. Pareciam duas horas.

Vi uma moça na outra ponta da praça, quase em frente à padaria.

Que beleza, hein! A pele marrom, cabelos lisos, um belo quadril, olhos de amêndoas, longo vestido leve, mãos delicadas. Iracema dos lábios de mel, a sorte grande.

Veio em minha direção. Desfile, graça, harmonia, fleuma, quadris, balanço.

Olhei no rosto, mas ela não retribuiu. Passou direto. Séria. Nem me viu.

Não era ela.

Inferno.

Cinco pras sete. Os jogadores se retiraram. Passaram em algazarra, sem camisa. Os vencedores azucrinavam os perdedores. Todos alegres, jovens, sem aflições de um telefonema na última quinta. Só se ouvia agora o balbuciar dos ébrios, naquelas conversas sem sentido entre eles. Cada um tropeçando na própria língua.

Sete horas. Nada.

Comecei a murchar. O perfume evaporou, meu cabelo desalinhou. O suor começou a criar as pizzas embaixo do meu sovaco. A boca ficou seca.

Ela vem. É só um atraso.

Sete e dez. Ninguém.

Talvez venha de ônibus. Passei a observar o ponto ali perto. Ninguém desceu, ninguém subiu.

Sete e vinte.

É possível que tenha acontecido um imprevisto.

Sete e meia.

Vou esperar mais 15 minutos.

Sete e 45.

Ok, espero mais 15.

Oito.

Já estou aqui, aguardo mais um pouquinho. Pode ser que ainda apareça.

Uma velha cruzou a praça, de negro, capenga. Me olhou nos olhos e, juro, a boca torceu, diabólica. Quase um sorriso. De canto do olho, vi a senhorinha sumir na esquina. Tive a impressão que olhou pra trás.

E assim fiquei até nove da noite numa espera sem fim pela voz. Saí e a praça deserta. Medo de assalto. Enquanto caminhava na passarela da derrota, na minha cabeça, alguém escondido ria da minha cara.

Cheguei em casa e sentei ao lado do telefone.

Ela vai ligar pra se explicar.

Nunca aconteceu.

Mês passado, um número não identificado começou a me ligar no mesmo horário daqueles dias que já vão longe.

Atendia e nada.

Até que… uma mulher, de novo.

Alô.

Alô.

Era só mais uma funcionária de telemarketing me oferecendo plano odontológico.

Desliguei.

E você aí achando que o auge da humilhação é os dois tracinhos azuis do WhatsApp sem resposta.

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Anderson Araújo é escritor e jornalista da equipe do DOL e publica às sextas-feiras.

A crônica de hoje foi publicada no Blog Daqui te Escrevo com o título "Telefone.

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Vá ouvir O telefone tocou novamente

Foto: Arte: Emerson coe e Thiago Sarame

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