Quando vi Daniel em um vídeo do Instagram, não pude deixar de me lembrar dos meus próprios naufrágios ou pavores de rio. Meio que todo mundo que vive nesse domínio de águas chamado Pará tem ou conhece uma história como a do pequeno sobrevivente, que, ainda sem saber da dimensão dessa experiência aterrorizante, surge na imagem informando com naturalidade o próprio nome, o nome da mãe e onde mora, surpreendentemente bem articulado e aparentemente calmo.

À espera para ser levado para casa pelos responsáveis, ele havia perdido a avó Dalva, de 50 anos, para as águas depois que a embarcação Dona Lourdes II foi a pique. Mas os olhos dele não mentiam: estava apavorado por ter lidado, ainda tão jovem, com questões tão caras: vida e morte ao mesmo tempo.

Quando tinha uns dois anos, também sobrevivi a um desastre no rio, com direito a boatos e lágrimas por fatalidade que foi dada como certeza. Me asseguro na lógica de estar escrevendo e empresto a memória de minha mãe para contar que nos salvamos, entre Belém e Cametá, cidade do Baixo Tocantins, berço da parte materna de nossa família.

Ela conta que era noite alta quando, próximo da comunidade Maiautá, em Abaetetuba, o barco parou. Viajávamos também com minha avó e minha tia caçula, com uns 8 anos na época. “Levante que é, dona, que o barco está indo pro fundo”, um homem alertou minha avó, enquanto o desespero se espalhava entre os passageiros e ela, inadvertidamente, tentava reunir os pertences.

“Provavelmente, morreria, não ia largar meu filho no rio”, minha mãe recorda sobre aquela madrugada úmida de 1981. Após muita apreensão e alguma sorte, a tripulação conseguiu que nossa pequena embarcação encostasse em terra firme e lá os marujos fizeram um reparo improvisado para tentar alcançar o porto principal de Abaetetuba. Sem garantia nem segurança, chegamos em Abaeté para fazer um transbordo até Cafezal e, só então, pegar um novo barco até Belém.

Na capital, em tempos de informações analógicas, quando até os telefones ainda eram inacessíveis, a notícia era uma só: naufrágio e morte. Morreram todos, não sobrou ninguém. O que era, obviamente, um exagero. Sofremos o pânico do possível afogamento, porém passamos incólumes por essa quase tragédia. De minha parte, as lembranças de estar à sombra de uma desgraça dessa profundidade se apagaram. Minha mãe relembra que eu mal andava, então, saber nadar estava fora de cogitação e, certamente, os coletes salva-vidas ou boias eram escassos para tanta angustia da pequena multidão de viajantes.

A história do menino Daniel me remeteu, ainda, a Luis Alexandre Velasco, o sobrevivente colombiano eternizado nas reportagens fantásticas de Gabriel Garcia Marquez, reunidas no livro “Relato de um náufrago”, que expõe como o marinheiro conseguiu driblar a fome, a sede, a loucura, a morte e o desespero que é estar perdido no mar por dez dias a bordo de um minúsculo bote, no ano de 1955. Como Daniel se salvou? Como manteve o espírito firme depois de ter se desgarrado da avó, que não teve a mesma sorte? A mim me parece que o impávido Daniel é um pequeno herói amazônico, um mito enraizado na nossa memória coletiva,  um menino-ícone, como todos nós fomos em nossos banhos fluviais da infância, que conseguiu se livrar de uma tragédia tão comum a todo nós, cercados de água e omissões que afundam barcos, canoas e navios, e transformam entes queridos em encantados viventes dos fundos das águas barrentas dos nossos rios.

Em meio à dor da perda e todo o turbilhão de acontecimentos, a família do menino ainda tenta juntar os cacos e enxugar as lágrimas entre o choque de ter perdido dona Dalva e a alegria de ter Daniel vivo. Sabe-se pouco sobre os momentos em que o garoto se agarrou à vida e nasceu de novo após o afundamento da embarcação. Uma parente dele, por telefone me conta, em meio à confusão dos preparativos fúnebres da tia falecida, que ele falou pouco após o naufrágio e pouco foi perguntado por familiares a fim de poupá-lo de tamanha tristeza em relembrar momento tão difícil.

Para Daniel, porém, ficou muito nítido que Dalva fez o possível e o impossível para mantê-lo vivo. “Ela fez de tudo para salvar ele, ela quem jogou ele em uma boia”, relatou economicamente a mulher que me atendeu e, mesmo abalada e atarefada, me testemunhou esse milagre.

À família de Daniel, minha profunda alegria por vê-lo vivo e meus sentimentos por Dalva, estendido a todos que confirmaram seus mortos ou ainda aguardam por boas novas vindas do resgate, ainda em curso neste momento.

Anderson Araújo é escritor e jornalista da equipe do DOL. Ele escreve às sextas-feiras.

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Foto: Arte: Emerson coe e Thiago Sarame

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