Apesar do estranhamento de ter passado dois anos sem a grande procissão nas ruas, tudo por causa da pandemia, Belém já vive o Círio de Nazaré. Quem está fora já conta as horas para voltar e quem está na capital inicia os preparativos para a grande festa . Com o período, chegam também as memórias da realidade fantástica que toma conta da cidade e remete a episódios inesquecíveis. Nem sempre por bons motivos, diga-se.

Para mim, uma dessas lembranças é também um trauma e marca o fim da minha infância, como também me une a uma incômoda emoção partilhada com minhas irmãs, em um bairro da Pedreira do passado, que agora só existe no que ainda recordamos dele. 

Nossa rua ainda era de terra? Não estou muito certo. Escrevo agora do mesmo bairro, mas numa área cheia de prédios de classe média e pequenos estabelecimentos para atender os moradores desses condomínio. Não é nem de perto, a minha Pedreira da periferia clássica belenense. Minha ruazinha era cheia de pontes e tomada de casebres erguidoss em madeira com assoalhos altos para fugir das enchentes. Quase todas essas moradias tinham quintais, muitos quintais, hoje assediados pela especulação imobiliária ou forrados de cimento ou ocupaados por outros casebres construídos para abrigar as novas gerações de moradores que deram cria e precisan improvisar para ter um teto onde viver.

Na minha casa, havia um desses quintais, dos grandes, com dois abieiros, onde eu subia para pensar, me esconder e olhar para o terreno da minha avó, minha vizinha de parede naquela época. Na casa da frente, também moravam um tio e a família dele, o que nos fazia um clã relativamente grande na nossa passagem e facilitava as reuniões em datas comemorativas. Essa proximidade fazia toda a diferença em épocas como a do Círio de Nazaré.

Naquele ano, não foi diferente. As três casas estavam mobilizadas, cada uma ao seu jeito, para o segundo domingo de outubro. As crianças, como sempre, assanhadas para a festa. Eu menos que os outros, porque já estava crescido e nunca fui muito extrovertido, comparado às minhas irmãs e meus primos, que eram menores e estavam extasiados com a maravilha do momento.

Só que uma notícia botou abaixo nossa alegria. No sábado, o casal de patos do tio Jackson, nosso vizinho da frente, iria para a panela. Era o fim abrupto de uma amizade profunda que, nós, crianças, tínhamos cultivado com aqueles bichos, sem nunca desconfiar que o milho que eles comiam e a boa vida que levavam no fundo do quintal eram parte de um plano macabro: garantir o almoço do Círio.

Numa época anterior ao ativismo da Luisa Mel, popularização do veganismo e defesa dos direitos dos animais, as crianças protestaram. Sem êxito, no entanto. Não teve jeito e os bichos começaram a ser preparados. O clima era um misto de horror e curiosidade com o máximo que tínhamos chegado a um ritual funesto.

Aquele quintal, nem sabíamos, era um corredor da morte para a pata e o patarrão.

O casal de animais parecia consciente do destino. Nas horas derradeiras, eles perceberam a movimentação e não saíram para o quintal. Ficaram ambos acuados no canto onde dormiam, faziam amor e ela colocava os ovos, com os olhos arregalados que os patos têm a vida inteira.

Da janela, ficamos olhando os dois, nos remoendo de pena e pavor. Condenados por crime nenhum. Muita injustiça. Minhas irmãs choravam e eu ali, indignado e de mãos atadas contra a tirania dos adultos.

A hora havia chegado e minha tia Kátia, sem muito preparo, ficou com a inglória tarefa de ser o carrasco das aves. Ao contrário do que pensamos, eles não esboçaram nenhuma reação e foi fácil apanhá-los no nicho em que aguardavam pelo triste momento. Por algum motivo desconhecido, ela pegou primeiro o macho. 

Ele se debateu todo, mas foi dominado pelas asas. Era um bicho bonito, grande e gordo, com penas escuras, meio esverdeadas, a cabeça branca e aquela membrana vermelha em cima do bico, que lhe emprestava muito charme.

Sem medir o trauma, resolvi assistir o abate do meu amigo emplumado. Era minha forma de dizer adeus e minha curiosidade mórbita apitando, também. Ele foi levado para o jirau e levou uma pancada para ficar zonzo e não se mexer muito durante a decapitação. Quando a faca baixou no pescoço, não tive coragem de olhar. Desviei e o mundo começou a apresentar as surpresas próprias do caos.

Sem muita força, Kátia não desconfiou que o bicho não ia desistir fácil. No golpe mal dado, o animal se desprendeu, saiu rebatendo panelas, derrubando cacarecos e lambuzando o quintal de sangue para desespero dos pequeninos que já estavam na porta da cozinha, boquiabertos, assistindo a cena. Era inacreditável a força do animal, mesmo depois de um golpe tão violento e do ferimento mortal, ele resistia, no seu impulso de vida, ainda que inescapavelmente já cruzando os umbrais da morte naquele quintal enlameado e cheio de flores rosas do jambeiro pelo chão. 

Debateu-se, caiu, levantou, equilibrou-se, caiu novamente. Até que se pôs de pé, como se fosse mais um dia normal de pato em seus domínios de fundo de casa. Incrivelmente, começou a andar.

Ninguém teve coragem de impedir a última caminhada do patarrão que, como um zumbi, estava com a cabeça dependurada por um fio de pele, irremediavelmente degolado. 

Nada explica, mas ele tomou o caminho de sempre e foi para o canto em que se aninhava com sua companheira pata, no estreito chagão em que os dois transformaram em um lar por longo tempo antes daquele dia.

Corremos para a janela lateral para acompanhar aquele espetáculo insólito. Ao ver o marido chegar, sem cabeça, em andar troncho dos mortos-vivos, a pata recuou até onde não pôde mais, como se fugisse do terror, e ficou petrificada diante da cena. Os olhos, antes inexpressivos, foram ganhando uma cor obscura que só as tragédias são capazes de pintar.

Com a ferida letal, o pato parou e se sentou a meio metro da fêmea e deu os últimos suspiros já sem nenhuma força para continuar sua demonstração impressionante de resistência.

A essa hora, o berreiro das crianças já tomava a casa inteira do tio Jackson. Os primos menores, sem entender muito, ficavam na ponta do pé para espiar pela janela o que acontecia e os adultos também pararam tudo para olhar. Minha mãe inclusive lamentou não ter filmado aqueles momentos estranhíssimos – estávamos uns 15 anos distantes da invenção dos smartphones e câmeras filmadoras eram um bem inacessível, coisa de gente rica.

Entre comovido e horrorizado, acompanhei o desenrolar do último adeus do pato e, diante do acontecimento surreal, o primeiro sinal de vocação para a função que me acompanha até hoje se revelou e estampei a manchete sonora: 

- A pata está chorando!

Na mesma hora, todo mundo olhou e percebeu que a fêmea estava debulhada em lágrimas diante do cadáver, que era o amor da sua curta vida de pata. Agora, ele estava morto e prostrado em uma extensa poça de sangue, imóvel, sem qualquer chance de retornar ao convívio dela. Nunca mais passeios juntos até o fundo do quintal, nunca mais comer o grosso milho atirado como ração, nunca mais invadir a casa e cagar na cozinha como desaforo aos humanos, nunca mais dormir aconchegados no chagão em noites úmidas. Ela parece que compreendeu que o destino do marido ambém seria o dela.

Ao saberem que a pata chorou, todo mundo veio acompanhar o lamento de viúva que deixou a tábua onde estava encolhida encharcada de tanto pesar.

Apesar de toda a comoção, pato e pato acabaram, impiedosamente, na panela naquele já quase esquecido Círio. As crianças não demoraram para superar a cena e se empanturraram de maniçoba no almoço nazareno – afinal, ninguém chegou a ver o que acontecia aos porcos para fazer aquele suculento prato da culinária paraense.

De minha parte, passei alguns anos sem contato com o pato no tucupi, que ainda hoje, quando provo, tem ainda resquício do pranto daquele esdrúxulo episódio do ano de 1990.

Anderson Araújo é escritor e jornalista da equipe do DOL. Ele escreve às sextas-feiras.

A crônica foi publicada originalmente no livro "Bêbado Gonzo e outras histórias", de autoria do colunisa. Mais textos como esse no blog Daqui te Escrevo.

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Foto: Arte: Emerson coe e Thiago Sarame

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