O Círio de Nossa senhora de Nazaré é uma fenda para outra dimensão que Belém graciosamente abre em outubro. Todo mundo sabe, a cidade é outra coisa nessa fresta. O cheiro, a luminosidade, a energia e os ânimos se transformam. A mim, tem um efeito muito nítido: a realidade ganha outro tempo, desacelera em contraste com a fúria das ruas e da gente desesperada para celebrar e sorver a mágica que toma conta de cada esquina.

A humanidade é atraída pela magia desde sempre. A invenção do fogo é a primeira prova desse deslumbramento. É atrás desse fogo, profano e sagrado, dessa ilusão palpável, que a multidão se amontoa sob o nosso sol inclemente.

Plácido, o caboclo, jamais suspeitou que construir aquela ermida improvisada transformaria o brejo de outrora numa fulgurante Hollywood tupiniquim, onde transitam, no meio do povaréu sonâmbulo ambulando, estrelas (ou aspirantes) da TV e das redes sociais. Do nada, se cruza com Padre Fábio de Melo com sua barba bem cuidada e seu rígido bíceps ou com uma Bárbara Paz fantasiada de naturalista do século 19 preparada para os horrores da selva ou com um Paulo Vieira suando empapuçado diante de uma cuia de açaí com peixe frito.

A quem é de paparicar famosos, meus parabéns. Vocês contribuem com nosso bom marketing da hospitalidade com os forasteiros, que voltam para suas terras com a impressão de que viveram o transe do outro Brasil. Um país escaldante de alta umidade, com povo acolhedor, festivo, barulhento, coloric e surreal. De fato, é Belém é um país, diferente de tudo. Como eu demorei tanto a vir aqui?, o famoso, que já gastou deus euros dezenas de vezes em Parri, se pergunta.

É, meu amigo, vivemos, sim, na melhor cidade da América do Sul, que me desculpe o Caetano.

Já eu, quando se trata do Círio, me comovo mesmo é com os anônimos. Nem tanto pela fé inquebrantável, que nos ajuda e ajudou até aqui a segurar essa barra que é gostar de Belém. Muito maior do que qualquer celebridade envolvida no hype e paparicada por patrocinadores, são os desconhecidos e humildes devotos de Nossa Senhora. São eles que emprestam histórias pessoais para fazer do Círio uma experiência imponderável, naquilo que está além da nossa compreensão racional para apreender o que é estar nessa época na maior capital da Amazônia – alguém dirá que é Manaus, mas vamos ignorar.

Depois desses dois anos sem Círio nas ruas, como que vindo de um sonho, um desses anônimos ressurgiu. Uma criatura mitológica zoomórfica demonstrando sua fé de maneira tão genuína e original. Seu Kato, o homem dos caranguejos, está no imaginário da capital há quase 30 anos desde que apareceu em 1995 para pagar a promessa em favor da saúde do filho pequeno. Num desses milagres visuais nazenos, ele retornou com roupa coberta de bichos em celebração à crença na Virgem.

Seu Kato está de volta com sua promessa histórica, agradecendo novamente pelo seu filho, pois além do seu nascimento e da vida, ele se tornou enfermeiro, e hoje cuida de pessoas, um homem sempre grato a Nossa Senhora de Nazaré. pic.twitter.com/2nAMhihwoy

— Renato Marques (@DocLovin87) October 9, 2022

Seu Kato é homem do povo, que nunca vi em propaganda de telefonia de celular, nem em novela da Globo, nem em celebração casamento de ator famoso – também não foi convidado pela Fafá (dona Maria de Fátima, me chame na próxima!). Uma amiga me contou que Kato trabalhou por uns anos na casa da avó dela nos serviços de limpeza e conservação da moradia e lá se preparava na década de 1990, quando vinha de São Caetano de Odivelas para Belém a fim de pagar a promessa estravagante. Depois do percurso sagrado, ele voltava com sua fantasia viva para residência dos ex-patrões e transforma as vestes em uma deliciosa caranguejada para o almoço do Círio.

Que fábula, uma promessa que se come ao final do pagamento, que beleza de comunhão para nós que amamos celebrar em volta da mesa.

Os jornais contam que o filho de Kato depois de adulto se sagrou grande cavalheiro da Enfermagem, um homem que esteve no front da nossa única e pior guerra conhecida, a pandemia. Cato não tinha ideia e talvez nem saiba hoje que estava salvando uma criança que salvaria tantas outras vidas no futuro. Tampouco o promesseiro poderia prever que ele mesmo seria um símbolo de renascimento ao reaparecer nas ruas com sua figura surrealista depois de longo período sem manifestar sua fé e sobrevier à peste que levou tantos de nós nestes anos de covid-19 e descalabros na Saúde nacional.

A impressão que tenho é que vi nas ruas de Belém o homem dos caranguejos. Foi na Avenida Presidente Vargas ou teria sido na Avenida Nazaré? Foi uma, duas, mil vezes? Parece que ele esteve em todos os 230 Círios realizados e estará para sempre pelas ruas da cidade em cada segundo domingo de outubro que virá.

É provável que eu não tenha visto nada e essa minha memória sobre Kato é falsa, parte da memória da cidade que se entranha em cada um de nós ao longo da história. Importa pouco se testemunhei ou não essa maravilha humana, misturado com a natureza dos mangues desfilando no asfalto da capital contrito e grato a uma santa de desterrados, como ele mesmo vindo de longe para agradecer.

Desde que soube de um homem que andava com caranguejos pendurados pelo corpo para pagar uma promessa, me perguntei o motivo. Por que os caranguejos? Por que esses animais espalhados pelo corpo que, no conjunto simbiótico, lhe transformam em outra coisa? A resposta é mais simples do que a nossa elaboração urbana e racional pode prever e ele é quem pode nos entregar. Mas, creio eu, que símbolos nos contam muito além do que se enxerga de imediato.

Um caranguejo é sinal de força e beleza, não a beleza objetiva, mas a beleza magnética do que nos é estranha já à primeira vista, a beleza que as crianças enxergam e as deixa paralisadas quando se deparam com esse bicho. Esse animal fabuloso está também na leitura antiga das estrelas, na Constelação de Câncer, e remete ao nosso deslumbramento pela lua e à nossa ligação com feminino, o sentimento, a intuição, a longevidade e a saúde também.

Cato só quer agradecer e pagar a dívida de amor que tem com a santa, contudo, na intuição de promesseiro dele, tornou-se ele próprio um estranho elemento pujante de tudo que não é compreendido e apenas sentido, das forças que nos instigam e confortam, das visões singulares que remexem nosso íntimo pelas ruas, da nossa insistente conexão com a natureza e com o fantástico, nesse tempo em que a cidade se torna outra sob total domínio de dona Nazaré.

 Anderson Araújo é escritor e jornalista da equipe do Dol. Ele escreve às sextas-feiras.

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Foto: Arte: Emerson coe e Thiago Sarame

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