Certa vez ouvi um amigo dizer: "crente faz de Deus seu cão de guarda particular. Um pitbull, que ao primeiro comando, avança em seus inimigos."

Essa frase pode parecer exagero, mas a verdade é que ela reflete a forma como alguns crentes agem no dia a dia.

Em 2013, participei de um congresso realizado pela igreja da qual eu fazia parte. O tema era: "prontos para vencer inimigos". O preletor convidado era um pastor muito jovem, que vinha fazendo sucesso no meio evangélico brasileiro.

Durante a ministração, depois de algumas palavras motivacionais, o pastor se vira para o público e diz: "sabe aquele teu inimigo? Sabe aquele que fala mal de ti? Que zomba da tua fé? Deus manda dizer que essa noite, ele cairá por terra." 

Isso foi o estopim, para que uma onda de histeria tomasse conta da igreja… Pulos, rodopios e um festival de línguas estranhas. Naquele instante percebi duas coisas: o quanto nós, crentes, somos vingativos e que Deus não estava naquele lugar.

Em 2020, um pastor de uma Igreja Batista em São Paulo, causou muita polêmica ao afirmar que a bíblia precisava ser "atualizada". Essa afirmação caiu como uma bomba no meio evangélico. Muitos criticaram a frase do pastor, afirmando que suas palavras foram heréticas. 

Em sua defesa, o pastor afirmou que sua fala tinha como objetivo chamar atenção para os desvios teológicos e, principalmente, para a forma literal, de como se estava interpretando alguns trechos bíblicos, ou seja, sem levar em conta o contexto histórico a qual foi escrito. Pois sem essas observações, daríamos legalidade aos abusos sofridos pela sociedade. 

Mesmo explicando seu ponto de vista, a igreja evangélica foi taxativa, repelindo com veemência o discurso do pastor, tendo como consequência, a sua expulsão da ordem dos pastores batistas do Brasil. 

Nos dois casos citados (de 2013 e 2020), ao meu ver, existe uma diferença no trato: a igreja que critica o discurso de "atualizar a bíblia" é a mesma que permite o ensino de doutrinas que divergem com os ensinamentos de Jesus. Para isso, basta ver as inúmeras heresias praticadas em nossas igrejas. 

São campanhas do lenço ungido, da prosperidade, da fogueira santa, quebra de maldições, de como se livrar dos seus inimigos, e tantas outras. O que parece é que a igreja faz “vista grossa” para assuntos que são do seu interesse e repele outros que tentam denunciar os desvios teológicos, cometidos pela liderança. Ou seja, a igreja parece ser seletiva em suas posições.

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Doutrinas que ensinam sobre a vingança e sobre o ódio, além de outras que fogem do evangelho, deveriam ser repelidas com força no meio cristão. Mas em vez disso o que vemos é a aceitação da maioria da igreja, deixando de lado a mensagem contida na cruz.

Os romanos adotaram a crucificação como método de pena capital, para criminosos, militares desertores, gladiadores, subversivos, escravos e todos aqueles que (exceto raras exceções) não tinham a cidadania romana. A partir desse momento histórico, existiu a plena consciência de que essa pena deveria ser aplicada como castigo punitivo, para que o condenado pudesse sofrer o máximo, até o momento da morte. Muitos, antes de serem pregados na cruz, eram flagelados. O flagelo era um tipo de chicote, formado por várias tiras de couro usadas para açoitar, e era um dos principais instrumentos de tortura usados nas punições romanas. Jesus foi vítima desse instrumento de tortura e morte, mas mesmo assim, não revidou.

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O Apóstolo Paulo, ao escrever a carta aos Filipenses, descreve como Cristo se portou em meio a crucificação: "De sorte que haja em vós o mesmo sentimento que houve também em Cristo Jesus, Que, sendo em forma de Deus, não teve por usurpação ser igual a Deus… E, achado na forma de homem, humilhou-se a si mesmo, sendo obediente até à morte, e morte de cruz." Filipenses 2.5;6;8

A cruz escancara a revelação do amor de Deus. Na cruz podemos ver um Deus totalmente vulnerável, humano, que sofre. Que mesmo em meio a dor, é capaz de se compadecer, de ter misericórdia de seus inimigos. 

Mas a "fé cega", está subvertendo essa mensagem. Dia após dia, vemos irmãos e irmãs na fé, com sede de vingança. O ditado popular "bandido bom é bandido morto" se tornou algo banal, quase bíblico no meio evangélico. A impressão é que a igreja evangélica venera, na verdade, um Deus nórdico. Um Thor, que com uma simples martelada, é capaz de dizimar seus inimigos. 

Na antiga tradição judaica os atos de bondade, nutriram uma cultura de deixar as bordas da plantação preservadas só para que os pobres pudessem ter o que comer (Levítico 19.9-10). 

Percebemos com isso, que a prática do amor, da misericórdia, era algo muito comum mesmo antes da vinda de Cristo. Mas com o passar dos tempos foi ficando de lado.

A igreja que deveria ser sal, perdeu o sabor. Transformaram Deus em um Deus sanguinário, que pouco se importa com os outros. Pois pra essa gente, Deus não ama pessoas. E se ama, ama somente os mais “chegados”, os que fazem parte do “clubinho particular”, chamado de igreja. 

Pela ótica de muitos evangélicos, o ladrão que estava ao lado de Cristo na cruz, não merecia misericórdia. Se dependesse deles, o “hoje mesmo estarás comigo no paraíso”, seria alterado por “hoje mesmo estarás no inferno”. Pois para muitos, Deus é um Deus que não ama seus inimigos.

Demax Silva é colunista do podcast Outside

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Foto: DEMAX SILVA SARMENTO

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