Nas “Obras Reunidas” (2000), de João de Jesus Paes Loureiro, o livro “O ser aberto” (1990) abre com uma citação de John Keats. “Foi só uma visão ou um sonho acordado?”, é a frase retirada de “Ode a um rouxinol”, poema de 1819, dois anos antes do romântico e lendário poeta inglês morrer, aos 25 anos.

Paes Loureiro sabe o valor de uma epígrafe. Seus trabalhos são repletos delas. Ele sabe seu papel de chave de leitura e compreensão de um texto, sua função de abertura e, ao mesmo tempo, de síntese.

Pode não parecer (nada é o que parece nessa poesia, mas tudo se revela exatamente com as aparências) mas os versos que compõem o “Ser aberto” e que são reapresentados agora em “Barcarolas: uma arte poética” estão muito próximos dessa faceta da epígrafe.

Não porque são poemas curtos ou poucos (10 poemas com 16 versos cada), mas porque são densos, guardam enigmas e, ao mesmo tempo, revelam um mundo.

O mundo nesse “Barcarolas” é da criação. Da criação do mundo pelo ser amazônico e da criação da poesia pelo artista.

O mundo é da canoa que dá significação ao homem e do homem, quem sem ele, ela, a barcarola, não existira.

O mundo do caboclo que se limita em sua barca, mas que é com ela que o horizonte se infinita.

Barcarolas, Paes Loureiro: Poesia é quando a linguagem sonha
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O mundo do leme que conjuga com a mão e da mão que guia a escrita.

O mundo da águas sobre as quais a canoa se deita e do poeta que nela se estira.

É esse um dos mundos que há décadas o poeta dedica sua obra literária e teórica. Realidade aparente que guarda o mergulho infindável da fantasia.

Aqui, os objetos sempre, como em grande parte da poesia do autor, são mais do que eles mesmos, a canoa é templo e expiação , é caminho e destino, é lida e libido.

Barcarolas, Paes Loureiro: Poesia é quando a linguagem sonha
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Esse é o elemento que atravessa o modo pelo qual o poeta vê a realidade, ele a vê sempre como uma dimensão de um mundo a ser exibido no que ele tem de mais perceptível e mais oculto. O fundamento per si do poético.

Na barcarola simples, repousa uma ode e uma elegia do ser e da escrita. Na navegação do poeta, nenhum verso é suficientemente grandiloquente que possa sintetizar tamanha poesia.

A poesia de um mundo que Paes Loureiro ainda vê com os olhos esperançosos de um romântico insuficiente, como sempre insuficiente é a palavra que o poeta esgrima.

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Quando, em 2003, pude publicar o primeiro livro sobre sua obra, esse mundo já há muito estava instaurado em sua arte poética.

Depois, no decorrer de outros trabalhos em que sua poesia ou seu trabalho ensaístico me acompanhavam, pude perceber o quanto a percepção desse mundo para Loureiro não era apenas uma escrita.

Mas era, em grande parte, uma forma de olhar e tentar domar a transitoriedade de um mundo que parece não ter um tempo, um lugar, em uma “terra sem males”.

Pode-se pensar muita coisa sobre essa poesia, menos que ela não esteja atrelada a essa visão do Ser que está aí, mas que não vemos.

Quando uma canoa que passa em frente à Estação das Docas e achamos bonito, “compondo a paisagem” dizemos, fotografamos.

A imagem da poesia é de outra percepção e significação. É a busca pelo ethos (sentido) de um mundo naquele objeto movediço e da constatação da poesia como sublime e agônica “Tarefa” (1964).

Diz-se que John Keats, citado por Loureiro, escreveu “Ode a um rouxinol” quando ele absorto se separou de um grupo de pessoas ao contemplar o pássaro cantando.

Mas o texto de Keats não é apenas um elogio ao canto da ave, ele possui uma dimensão forte sobre a fragilidade da existência, sobre a impossibilidade de um paraíso permanente.

Vejamos esses versos de Loureiro em “Barcarola V”:

A minha canoa vive

além de mim e da morte.

A forma é sua eternidade.

Língua e linguagem. A sorte.

Eu sou, enquanto navego,

de seu ego nave, templo.

A sua razão de ser.

Metáfora do momento.

Oh! Geometria com alma!

Assim é minha canoa...

Boiúna boiando. Vago

lume vago que flutua.

O que ficará de nós,

além do nada que é nosso:

madeira, quilhas e ossos

cabelo, poeira e verso?

Como se vê, esses versos estão longe de uma visão inocente sobre a existência. Não estou comparando literaturas e motivos diferentes, estou exibindo o que é próprio da poesia, estou, para lembrar Mário Faustino, exibindo “madeira, quilhas e ossos”.

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Essa revisitação à sua obra nesse “Barcarolas” tem uma contribuição que em nada é um complemento, mas se transforma em sua verdadeira substância, são os trabalhos da artista visual Nina Matos.

Se você, caro leitor, tiver a oportunidade de ler esse livro, tenha a oportunidade de vê-lo. É esse seu sentido.

Os trabalhos de Nina Matos atravessam esses poemas, condensam horizontes, expandem a poesia, fazem uma bricolagem da percepção.

São cartografias da percepção, cartografias para se perder.

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São também epígrafes, como essa poesia de Loureiro, na qual o mundo está sintetizado na imagem e aberto para sua compreensão.

Ao ler esses poemas, como Keats, talvez você possa se perguntar “foi só uma visão ou um sonho acordado?”

Não é esse um dos sentidos da poesia? Para trazer um dos versos desse livro, poesia é quando a linguagem sonha.

Relivaldo Pinho é autor de, dentre outros livros, “Antropologia e filosofia: experiência e estética na literatura e no cinema da Amazônia”, ed. ufpa.

relivaldopinho@gmail.com

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