As gírias e a sonoridade da fala paraense tomaram as redes em perfis que exaltam o que se crê como sotaque do Pará. Não por acaso, eles reúnem algumas centenas de milhares de seguidores e replicam mundo afora o chiado que escapa nas palavras com S e expressões como a o multiuso “égua” e o “mana”, pronome de tratamento universal que vale para todo mundo – homens ou mulheres. O fato é que o sotaque paraense caiu no gosto popular e se tornou uma potente ferramenta de reforço da nossa idade. Mas será que o Pará fala uma única língua?
Como capital, Belém acaba sendo também uma referência mais abrangente para todo o Estado, porém, não dá para ignorar as falas das outras regiões, muito menos dizer que elas são menos paraenses do que em terras belenenses e cercanias. Há caraterísticas comuns em todo o território, como explicam especialistas, mas também diferenças fundamentais.
O professor da Universidade Federal do Pará (UFPA) com pós-doutorado em Linguística pela Universidade Federal do Ceará, Alcides Fernandes Lima, tem uma vida dedicada a estudar a linguagem brasileira, ênfase em como falam paraenses. Ele já participou de projetos que geraram, por exemplo, as publicações como “Estudos Geo-Sociolinguísticos no Estado do Pará e o “Atlas Linguístico do Brasil (ALiB).
Segundo Alcides, resumidamente, o Pará estaria divido em dois quanto aos sotaques. “É como se houvesse uma linha dividindo a parte de cima e a parte de baixo”, explica, em linguagem simples para facilitar a compreensão. A primeira inclui Belém e região metropolitana, a região do Marajó e do Baixo Tocantins e Baixo Amazonas, além das cidades do nordeste paraense. Já na segunda estão o sul, o sudeste e o sudoeste, com grandes cidades como Marabá, Parauapebas e Altamira.
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Chiado nosso de cada dia
O que nos dividiria quando o tema é o falar? Em 25 anos de estudos, Alcides Lima chama atenção para o nosso chiado, pronunciado sobretudo nas palavras com S. Enquanto a parte de cima chia em ao dizer vocábulos como “arroz”, “dois”, “nós”, “casca”, a parte de baixo soa com um S mais enxuto, muito mais parecido com o que se fala em outras Estados, como os do Nordeste e do Sudeste brasileiro. “Isso é muito Marabá marcante. Nessa região, você ver muita gente de São Paulo”, comenta.
Mas, afinal, de onde vem o chiado que se ouve em cidades como Belém e Santarém? Vem principalmente da Ilha dos Açores e de Lisboa, em Portugal. Como muito dos traços de sotaques do Pará, o chiado também tem origem em terras portuguesas. O Pará foi e é destino de imigrantes lusitanos, do período colonial até hoje, sendo o quarto Estado brasileiro a recepcionar a maior leva desses estrangeiros ibéricos. O chiado também está presente no Rio de Janeiro, no Espírito Santo e Santa Catarina, onde açorianos também deixaram sua marca.
Esse S palatalizado tem um certo ‘prestígio’. Uma vez eu estava em Santarém com um colega, estávamos almoçando num restaurante. Aí, um rapaz que estava servindo a gente, de repente, se aproximou e perguntou: ‘vocês são de Belém, né?’ Respondi que sim e perguntei o porquê. ‘É porque lá que o pessoal fala assim tudo afrescalhado’. Então isso é muito interessante porque a questão os traços de variação linguística são identidades comunidades, né? E tem mão dupla. O que me marca como diferente é aquilo que me identifica.
Alcides Fernandes Lima, Pesquisador e doutro em LinguísticaO chiar é uma das marcas de um fenômeno que os linguistas chamas de palatalização. É claro que os sons que, resumidamente, são frutos do encostar da língua no palato (o céu da boca) não se limitam ás palavras com S. A mania de palatalizar também abrange sons de T, D, L e N. Preste atenção quando um paraense da “parte de cima” disser “noite”, “dia”, “livro” e “menino”: você vai ouvir “noitche”, “djia” “lhivro” e “menhinho”. Está tudo dominado, quer dizer, palatalizado.
Alcides também demonstra que a palatalização tem a ver com a própria história da Língua Portuguesa. Derivada do latim, como o Espanhol, o Francês, Italianos e outros idiomas, o Português tem uma forte tendência a palatalizar. “No latim, não havia as palatais. Todas as palatais que temos surgiram na passagem do Latim para Português. O nosso português tem ainda esses traços mais antigo. Tem uma outra questão que é do próprio processo articulatório”, comenta o professor.
Ah, mas por que não é assim no Nordeste também? Por que o "tia" e "dia" não são palatalizados por lá? Alcides parte para uma explicação sociológica da nossa língua portuguesa: “os fenômenos estruturais da língua não se superpõem aos fenômenos sociais, entendeu?”. Não? Quer dizer que nem sempre o falante escolhe falar de determinado jeito, mesmo com as condições todas favoráveis. A variação depende muito dos fatores sociais.
De onde vem o égua paraense?
Égua, não! Égua de ti! ÉEEEGUA! É-GU-A! Égua, moleque! São tantas formas e tantos usos do égua no vocabulário paraense que não é exagero dizer que a expressão é quase uma vírgula em muitas regiões do Estado. Para quem nunca esteve nas cidades do Pará, é bom ficar sabendo que o “égua” mencionado nesta reportagem não tem a ver com fêmea do cavalo, mas com o modo muito própria em que falaste do “paraenses” expressam desde da surpresa ao contentamento, do reforço de uma deia à contrariedade diante de uma situação, do desabafo ao alívio. Quase tudo pode ser resumido, iniciado ou concluído com um “égua”.
Além do égua, há ainda variações dele ou expressões que remetem a ele, como o “pai d’égua” e “baixa da égua”. Alcides diz que não é exclusividade de Belém, podendo ser observado o “égua” em outros Estados, como o Amazonas, e nos do Nordeste. É possível que nosso égua tenha atravessado do sertão nordestino até Belém e aqui ganhou novas formas e variações. É uma aposta, mas que carece de um estudo mais aprofundado dessa origem, explica o professor.
Dá para bater o martelo e dizer que vem do Nordeste? Alcides apostaria que sim, mas é um pouco complicado fazer a afirmação. “Cada palavra em si tem a sua própria história. Às vezes, o estudo de uma única palavra dá uma tese ou várias. Então, é não é uma coisa tão simples afirmar categoricamente”, pondera. De qualquer forma, o pesquisador concorda que a utilização em Belém ganhou tantas aplicações bem diferentes da possível origem, tornando a palavra como “frase interjetiva”.
“Tem situações inclusive com colegas que comentaram que saíram do Pará e foram para o Sul e as crianças deles tiveram problemas na escola. Os pais foram chamados, porque uma outra criança reclamou que era chamada de ‘égua’ pela coleguinha o tempo todo. A pessoa não entendia que era apenas uma expressão bem característica de Belém”, pontua.
Um R paulista perdido em Cametá
Um ponto que chama atenção nas pesquisas de Alcides diz respeito a uma observação feita em Cametá, no nordeste paraense, na região do Baixo Tocantins. Lá vigora um rico vocabulário com uma sonoridade singular que torna o sotaque dos cametaenses um dos mais interessantes do Pará. A cidade conhecida por ilustres figuras como o Mestre Cupijó e o peixe-símbolo mapará também é motivo de atenção de pesquisadores da linguagem.
O estudo realizado por Alcides na década de 1990, por exemplo, constata a presença do chamado R retroflexo, mais conhecido como “R Paulista”: aquele R caprichado em palavras com porta, portão e porteira que já foi chamado também como “R Caipira”. Em meio a outros erres falados no Pará, os cametaenses também aplicam esse que muito mais comum no Sudeste e no Centro-Oeste brasileiro.
Pelo levantamento, esse tipo de som foi encontrado em 7% da amostra. Percentualmente, pode parecer pouco, mas não deixa de ser curioso que uma cidade do interior do Estado do Pará tenha essa semelhança com o falar em São Paulo e outras regiões do Centro-Sul brasileiro. A razão para essa constatação está no movimento dos bandeirantes, os homens que singraram os sertões do Brasil em busca de riquezas no período colonial, cuja movimentação deu origem a conflitos com povos originários, formações de cidades e novos ciclos econômicos, isto é, interferindo diretamente na história do país.
Alcides acredita que a presença de bandeirantes liderados pelo português Raposo Tavares, no século 17, pode ter deixado esse vestígio linguístico. De fato, os registros históricos mostram que o bandeirante realizou a última grande expedição de 1648 a 1651, iniciando em São, passando pelo Mato Grosso e chegando a cidades paraenses, como Belém e Gurupá. A sanha pela prata teria espalhado o R que hoje é conhecido como “paulista”.
São muitas as nuances dos sotaques de um Estado com um território que é do tamanho de países como Angola (que também fala o Português). A presença dos povos originários, a chegada dos europeus e dos africanos escravizados contribuíram para a formação do linguajar paraense, também amplamente modificado pelas migrações internas do Sul, Sudeste e Nordeste. Alcides explica ainda que as variações são influenciadas não apenas por regiões, mas também por idade, classe social, gênero, religião, educação formal e tantos outros aspectos. Em resumo, a língua, viva como é, continua mudando e apresentando novas formas a cada dia, a cada nova geração, novos suportes e tecnologias.
Equipe Dol Especiais
- Reportagem e Edição: Anderson Araújo