Assim que entrei na pequena loja de vinil, quase na esquina da Avenida Cipriano Santos com a Avenida Almirante Barroso, fui recebida pelo cheiro inconfundível de madeira antiga. Entre LPs, ferros de passar a carvão, moedor de carne manual, televisão de tubo, um candieiro com muita história para contar, telefones antigos e bonecas de coleção com olhares enigmáticos, senti como se tivesse viajado no tempo.
Fernando Cassiano Campos de Souza, conhecido como Nando, de 54 anos, é o proprietário da loja Nando Vinil, ele caminha devagar entre as prateleiras, passando a mão suavemente sobre os vinis procurando alguns EPs para nos mostrar, nos primeiros minutos dentro da loja, percebo o amor incondicional que tem pelos "bolachões", amor que, segundo ele, foi herdado de seu velho e falecido pai.
A loja é um templo para os amantes do vinil. Nando agradece a Deus e a seu pai pelo que faz, afirmando: “Trabalhar com discos de vinil é algo que amo, e me sinto realizado”. Ele iniciou sua história no mundo da música aos 15 anos, vendendo discos na calçada em frente ao colégio Lar de Maria, no bairro de São Brás, em Belém.
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Quase quatro décadas depois, ele continua sua paixão, mantendo viva a memória do pai, Manoel Cassiano de Souza, que faleceu jovem, mas deixou um legado. Nando fala com orgulho sobre a trajetória de Manoel, que começou com uma aparelhagem de som e decidiu vender discos.
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Ao entrar na loja de discos, a presença do pai está marcada em um porta retrato dourado, homenagem de Cassiano ao fundador do negócio. A loja oferece não apenas discos, mas também CDs, fitas cassete e outros itens colecionáveis, atraindo clientes de todas as idades.
Os objetos empoeirados nas prateleiras da loja não são apenas antiguidades, são fragmentos de histórias passadas. Imagino, por exemplo, que um ferro a gás pode ter sido usado em uma manhã de domingo por uma dona de casa cuidadosa, preparando as roupas para uma semana de trabalho. As bonecas de porcelana, com seus vestidos delicados, talvez tenham sido o tesouro de uma criança em algum lugar, décadas atrás.
O que um ferro a carvão, uma boneca de porcelana e um disco de vinil têm em comum? Em uma loja quase de esquina cheia de tesouros esquecidos pelo tempo, essas relíquias encontram uma nova vida e um novo propósito no Nando Vinil.
Em um mundo onde tudo é instantâneo e digital, a loja é como uma pausa no tempo, onde objetos antigos ganham nova vida e lembram um passado em que as coisas eram feitas para durar. Os discos de vinil, os carrinhos de coleção e o telefone de época coexistem em um espaço que parece desafiar a pressa do mundo moderno.
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"Maneira certa de ouvir música"
“O vinil nunca saiu da minha vida, sempre ouvi, quando os CDs foram lançados e os vinis começaram a sair do mercado, meu avô me dizia que ouvir vinil era a maneira certa de ouvir música. Apesar de, claro, baixar e ouvir app de música, o vinil em primeiro lugar”, enfatiza Danlan Gomes, analista de sistemas, guitarrista e vocalista da banda Bella Valentina. Ele é um colecionador de "bolachões" desde a década de 1990.
Nascido em uma época em que os LPs eram uma das principais mídias para consumir música, Darlan possui um acervo pessoal que já atingiu a marca de 500 discos. Entre suas primeiras aquisições, recorda com carinho de álbuns icônicos como "Ramones" (1976), "As Quatro Estações" da Legião Urbana e uma coletânea do ABBA, todos guardados com apreço até hoje.
Crescendo em um lar repleto de música, Darlan destaca a singularidade do vinil: “O vinil tem uma beleza única, coisa que jamais foi reproduzida de forma tão bonita, a capa que normalmente são bonitas e parecem quadros portáteis, até os pequenos estalos do disco é apaixonante”. Ele ainda sonha em completar sua coleção com os discos originais do Smashing Pumpkins, que considera seu “santo graal”. Seu filho, Ian, de 12 anos, seguindo o exemplo do pai, desenvolveu uma paixão por música, segurando um raro disco da banda Cigarettes, indicando que a tradição familiar de amor pelo vinil continuará.
Os gêneros que compõem a coleção de Darlan vão do rock ao samba, passando pela música clássica e instrumental. Ele se dedica a organizar seus discos por gênero e a busca por raridades, como as gravações de Noel Rosa e Cartola. Embora utilize a internet e amigos para encontrar LPs, sua preferência ainda recai sobre lojas físicas.
A Reinvenção do vinil no século XXI
Após 76 anos, o vinil continua a ser relevante, mesmo em uma era dominada pela tecnologia. De acordo com o relatório "Mercado Fonográfico Brasileiro 2023", as vendas de discos de vinil alcançaram R$ 11 milhões, apresentando um crescimento de 136,2% em relação ao ano anterior. O LP tornou-se o formato físico mais vendido no Brasil, superando CDs e DVDs.
Artistas, especialmente do rock, têm investido na produção de discos em vinil, com tiragens limitadas. Um exemplo é a banda Delinquentes, que toca o ritmo punk hardcore que recentemente lançou seu álbum "A Serpente" em formato físico, reafirmando a conexão com seus fãs e a tradição do vinil. O vocalista, Jayme Katarro, destaca que o vinil não apenas remete ao passado, mas também aponta para o futuro do mercado musical.
O processo criativo que envolve a produção de um álbum em vinil é cuidadoso e intencional, considerando a disposição das faixas e a experiência do ouvinte. A capa do novo álbum da banda foi inspirada no filme "O Ovo da Serpente", de Ingmar Bergman, refletindo temas relevantes da atualidade.
Nostalgia
Caio Gomes Carneiro, professor de História, graduado pela Universidade Federal do Pará (UFPA), com especialização em "Amazônia: História Espaço e Cultura" pela Faculdades Integradas Brasil (Fibra), destaca que o crescente movimento da cultura retrô tem valorizado os discos de vinil, que evocam uma profunda sensação de nostalgia. “Esse retorno pode ser atribuído ao avanço das tecnologias, permitindo que muitos conheçam o que era consumido no passado, gerando curiosidade e um desejo de experimentar algo diferente. Isso resulta em uma busca por produtos que remetem a experiências anteriores”, explica.
O professor ressalta que o consumo de tecnologias antigas cria uma conexão com histórias vividas, ouvidas ou transmitidas por familiares e amigos. “Essas tecnologias nostálgicas proporcionam uma experiência sinestésica, repleta de emoções e lembranças. Ouvir um disco de vinil pode evocar memórias de aniversários, festas com amigos ou até mesmo momentos em que os pais cantavam e dançavam. Isso nos transporta para locais de memórias afetivas, tornando a experiência musical algo carregado de significado e afeto”, afirma.
Passado permanente
Caio acredita firmemente que a popularidade do vinil no século XXI não é uma tendência passageira. Na Amazônia, a presença do vinil é forte, especialmente em eventos como festas e bailes da saudade, onde DJs frequentemente utilizam discos para animar as festas, incluindo as celebrações de reggae. Mesmo que as máquinas de vinil não sejam tão utilizadas devido ao uso de celulares, elas continuam disponíveis em lojas especializadas e em coletivos que promovem a fotografia analógica e outras formas de arte não digital.
O professor aponta que o fascínio pelos vinis pode ser explicado pela experiência tátil envolvida. O ato de retirar um disco da capa, colocá-lo na vitrola e observá-lo girar enquanto emite som cria um apego maior do que simplesmente selecionar uma música em um dispositivo digital. Essa conexão também se aplica a outras experiências, como revelar fotos de forma artesanal, rebobinar fitas K7 ou adquirir móveis feitos "à moda antiga", que possuem estilos e formatos raramente encontrados em grandes varejistas.
A tecnologia moderna não apenas facilita o acesso a essas experiências, mas também serve como uma ponte entre o presente e o passado. Essa interação é fomentada por canais no YouTube e TikTok que exploram temas vintage, assim como pela formação de clubes dedicados ao vinil, à fotografia analógica e à marcenaria. O meio online frequentemente impulsiona mostras e exposições que atraem tanto nichos específicos quanto o público em geral.
Os objetos vintage, antes restritos a nichos, agora têm um apelo muito maior e se tornaram mais acessíveis ao público. Marcas contemporâneas frequentemente produzem itens modernos com um toque nostálgico, como geladeiras e cafeterias, gerando um impacto que vai além do emocional, envolvendo também aspectos de decoração e design.
Equipe Dol Especiais:
Brenda Hayashi é repórter do portal Dol desde janeiro de 2022 e também coleciona discos de vinil. Apaixonada por antiguidade e apreciadora de músicas das décadas de 1960 a 1990, ela gosta de escrever sobre assuntos relacionados à moda, beleza, entretenimento e cultura.
Emerson Coe é profissional multimídia do portal Dol e produziu fotos e vídeos para estar reportagem. Ele ilustrador com mais de 30 anos de carreira, é cartunista e quadrinista. Com participações e prêmios em exposições internacionais, destaca-se por sua arte crítica e seu envolvimento em projetos de humor gráfico mundial.
Anderson Araújo é editor e coordenador dos conteúdos especiais do Dol. Formado pela Universidade Federal do Pará (UFPA), em 2004, e mestre em Ciências da Comunicação pela Universidade do Porto (Portugal), em 2022. É também autor de dois livros de contos e crônicas publicados em 2013 e 2023, respectivamente.