Na infância, crianças escutam contos de fadas com príncipes, princesas, sapos e seres encantados. Os vilões dessas histórias quase sempre tratados como magos, feiticeiros e bruxas, fazem com que a imaginação os torne algo relacionado ao medo, ao oculto e à maldade. Porém, não é bem assim.
Mulheres foram perseguidas durante a Idade Média, mas a história comprovou que elas eram sábias e usavam seus “poderes” para fazer o bem. Com o tempo, as religiões pagãs, aquelas que cultuam a natureza e outros deuses, ganharam adeptos em todo o mundo em busca de um encontro espiritual com elementos como a lua, o sol e o universo, como é o caso da religião Wicca.
A Wicca é a bruxaria moderna, ou seja, um culto contemporâneo que busca se expressar através de caminhos antigos. Não há sacrificio animal e não tem qualquer sincretismo com o cristianismo, sendo em essência, uma religião pagã, cultuando os ciclos da Terra, dos astros e das estações, além de honrarmos os elementos da natureza.
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Além disso, As práticas ocorrem por meio de rituais, onde vivenciam-se símbolos esotéricos e mitos através da magia cerimonial, agregando também elementos xamanísticos e de bruxaria folclórica. Além do cerimonial, o canto, a dança e a meditação fazem parte dos Wiccanos. As reuniões ocorrem em pequenos grupos chamados "Covens", e não é comum ter uma sede ou templo. Geralmente, as reuniões são na casa de um dos adeptos ou em um lugar público.
Um exemplo de praticantes da religião Wicca em Belém, é o grupo Coven Anam Cara que se reúne para celebrar a natureza e os astros. Quem explica mais é Filipe Almeida, sacerdote da Coven Anam Cara, que é adepto desde os 17 anos e sempre buscou se encontrar espiritualmente.
Filipe conta que chegou a praticar o Cristianismo e o Espiritismo, mas foi na Wicca que percebeu que era seu lugar. “Sempre me senti atraído pela natureza, e quando entendi o lugar sagrado que ela ocupa na bruxaria, isso fez total sentido para mim. Ao aprender mais sobre Wicca, o termo que usamos para denominar a Bruxaria Moderna que praticamos, percebi que se tratava de uma religião adaptada aos nossos tempos e em consonância com a minha visão de mundo. Costumamos dizer que a bruxaria é um caminho que percorremos através de nossas muitas vidas e reencarnações. Quando estive pela primeira vez dentro de um círculo, aos 17 anos, compreendi que sempre fui bruxo; havia voltado para casa”, diz.
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O sacerdote conta que os rituais ocorrem de acordo com um calendário litúrgico sempre observando os ciclos perfeitos das águas, a passagem das estações e dos astros, bem como o delicado equilíbrio dos ecossistemas, passando também pelas fases da lua, os equinócios e solstícios.
“Acreditamos estar trazendo a harmonia dos padrões da natureza para as nossas vidas. Fazemos isso através de rituais, cerimônias, cantos, danças e meditação, sendo que nosso corpo e nossa relação com ele têm um papel central. Celebramos também os chamados ‘Deuses Antigos’, divindades que representam aspectos anímicos de nossa psique, da natureza e suas manifestações, presentes na maioria das culturas pré-cristãs, onde a maioria das sociedades era politeísta e mantinha uma relação mais intensa com a natureza e suas forças. Reconstruímos alguns desses ritos antigos com o objetivo de fazer pulsar, nos dias de hoje, a força dessas divindades e honrar a sabedoria dessas culturas antigas”, completa Filipe.
Ao longo dos anos, com representações na cultura pop, a figura dos bruxos malvados, fez com que a discriminação e o preconceito com as religiões neopagãs aumentasse e isso pode afeta quem faz parte da Wicca. Filipe diz que conhece pessoas que chegaram a perder a guarda de filhos por falta de conhecimento com os Wiccanos.
“Somos demonizados, ou seja, é atribuída a nós um culto diabólico, mas ironicamente, não temos esse personagem, que é próprio do cristianismo, em nossa simbologia ou prática. Alguns de nós já sofreram perseguições no trabalho, na família e em círculos sociais. Houve também pessoas que perderam a guarda de seus filhos ou foram acusadas injustamente. No passado, as bruxas eram queimadas por serem associadas a todo tipo de atrocidade, quando na verdade eram mulheres sábias, curandeiras, parteiras e influentes em suas comunidades”, conclui Filipe.
O feminismo e as bruxas modernas
Em 19 de agosto de 1692, a cidade de Salem, na então colônia britânica de Massachusetts, viveu um momento que entrou para a história: cinco pessoas foram executadas sob acusação de bruxaria em um dos episódios mais infames da história americana, o Julgamento das Bruxas de Salem. Com um total de 200 pessoas presas ou acusadas de práticas bruxas e 20 condenadas à morte, o caso representa um marco na era de caça às bruxas.
A situação em Salem só começou a mudar em outubro, quando o governador William Phipps, pressionado por um pedido de reconsideração do então presidente da Universidade de Harvard, decidiu rever o caso. Em uma carta, o acadêmico criticou o uso de "evidências especulativas" — como visões e sonhos — nos julgamentos, ressaltando que "é melhor que dez bruxas suspeitas escapem do que uma pessoa inocente seja condenada". A decisão de encerrar o tribunal veio quando a própria esposa do governador foi incluída entre os acusados de bruxaria. Assim, em 29 de outubro, Phipps decretou o fim dos julgamentos, encerrando uma das passagens mais obscuras da história colonial americana e o caso foi considerado como histeria coletiva.
Com os avanços sociais durante os séculos, a visão de como são as bruxas mudou. As mulheres começaram a ter sua voz ampliada, lutaram por direitos que antes eram só dos homens e fizeram com que fossem vistas como sábias perante a sociedade. Para Lygia Moura, uma das mulheres que faz parte do grupo Wicca em Belém, isso ajuda a mudar o estereótipo feminino criado durante a idade média.
"Digo que é natural que essa imagem mude, porque os próprios valores da sociedade mudaram. Nossas estruturas de poder são outras, assim como o que tememos e o que vemos como poder. Onde eu mais consigo ver essa modificação é na visão da sociedade sobre a mulher e do feminino, que é algo que andou de mãos dadas com a imagem da bruxa, logo em uma época que a imagem da mulher poderosa e dona de si é muito mais interessante, é compreensível que recorramos à imagem da bruxa. Por outro lado, como a igreja católica passou muito tempo colocando a bruxa como sua antagonista, vemos que isso ainda tem influência na imagem da bruxa dos dias de hoje. Por um lado, somos vistas como pecadoras e seguidoras do diabo (a maioria de nós nem acredita no diabo) e por outro como um símbolo da luta contra valores defasados, já que a wicca foi uma crença que ganhou força na contra cultura", explica.
Como Wicca, Lygia acredita que sua conexão se deu quando começou a estudar mais sobre magia e sobre a lua, que representa o feminino nos cultos a elementos da natureza. Essa ligação também a fez perceber que outras religiões tinham uma imagem masculina muito mais valorizada que a feminina.
"Pessoalmente, na wicca eu encontro uma crença lunar, que reconhece o feminino como um poder à parte, tão importante quanto o masculino, e que me dá símbolos de poder que eu posso reconhecer em mim mesma, diferente das outras religiões pelas quais passei, que quando encontrava símbolos femininos de poder, não me identificava com eles, além de quase sempre ter uma entidade masculina vista como superior. Já para o feminismo, era muito poderoso você ter uma religião que tinha uma Deusa como sua figura principal, e além disso, trazer a imagem da bruxa, cuja demonização está altamente relacionada com a subjugação da mulher desde muito antes da igreja católica, encontrando seu auge na inquisição, que hoje reconhecemos como um dos maiores episódios de misoginia da história."
"Vejo que essa importância é muito presente nas mulheres wiccanas, já que muitas chegam na bruxaria e no culto ao feminino através da wicca, e ela própria foi uma grande voz quanto a isso, logo fico muito feliz quando vejo mulheres que chegam na wicca e encontram a Deusa e a identificação como bruxas, como formas de reconhecer seu próprio poder. Toda mulher merece isso, a meu ver, independente de qual caminho escolher", enfatiza Lygia.
O neopaganismo Wicca e sua força no Brasil
Embora tímida e pouco conhecida, a religião tem força, pontos de encontro e muitos seguidores.
Entender movimentos religiosos diferentes é ter diferentes visões sobre o mundo em que vivemos e sobre cada entendimento do que é a vida.
Dentre as várias crenças, está a Wicca. A religião, considerada neo-pagã, é um culto aos ciclos da natureza, como explica o cientista da religião Johnathan Jhonson, formado pela Universidade do Estado do Pará (UEPA) e ex-frequentador de religiões neopagãs.
"Ela é uma ressignificância das práticas antigas, que eram feitas na Europa. Como é uma religião de nova era, ela é sincretizada, não só se limitando a um panteão".
A religião, de uma forma geral, gira em torno da Deusa-Mãe. A Deusa-Mãe, de forma essencial, é a própria Terra, considerada a força sustentadora da vida. A Wicca é a maior religião neopagã do mundo.
"De certa forma, essas crenças nunca perderam a popularidade. Com o advento do cristianismo, muita coisa ficou escondida ou foi sincretizada. Algumas comemorações do cristianismo são algumas ressignificações até da Wicca, como o São João. Ela nunca perdeu a popularidade, mas ficou menos aparente com a popularidade do cristianismo", explica Johnathan.
A Wicca, enquanto religião, foi institucionalizada por Gerald Gardner, em meados do século XX, no Reino Unido. No Brasil, a crença também tem certa força, em especial por conta da imigração europeia.
"Existem sítios dedicados a fazer essas festividades da Wicca no Brasil, inclusive em Belém. Mas em comparação com o cristianismo ou religiões de matrizes africanas, é muito tímida", concluiu.
Equipe Dol Especiais
- Laura Vasconcelos é reporter do portal Dol, jornalista formada pela Universidade da Amazônia (Unama), nascida em Belém do Pará. É também autora de dois livros de crônicas: "Fugacidade dos dias" (2020) e "A distância" (2022).
- Rafael Miyake é repórter do portal DOL. Nascido e criado em Belém do Pará, é formado em comunicação social com ênfase em jornalismo pela Universidade Federal do Pará. É pós-graduando em Jornalismo Digital pela Anhanguera.