Embora alvo de pesquisas há mais de 30 anos, a tecnologia de RNA mensageiro (RNAm) parecia ainda distante de se tornar realidade. Porém, com a pandemia e o investimento nunca antes visto na história das vacinas, vieram duas conquistas inéditas para a área: os primeiros imunizantes com a tecnologia inovadora a serem aprovados e aplicados em larga escala, e a produção de vacinas desenvolvidas em tempo recorde, em menos de um ano.

Agora, que além de consolidada e segura a tecnologia se mostrou altamente eficaz, já estão em testes estratégias com a técnica para a prevenção inédita de doenças como HIV, zika, ebola, herpes, além de novas vacinas mais eficazes para tuberculose, malária, dengue e gripe. Há até mesmo estudos promissores que implementam o RNAm para o combate ao câncer e de diagnósticos como diabetes e anemia falciforme. Os pesquisadores traçam um cenário otimista para grandes avanços científicos na próxima década.

BRASIL

E o Brasil deve ganhar destaque com a produção própria de imunizantes e terapias que adotam a tecnologia. Na Bahia, já é desenvolvida uma nova vacina contra a Covid-19 que utiliza a plataforma, por cientistas do Senai Cimatec, que está em testes clínicos.

Em 2021, Bio-Manguinhos, da Fiocruz, foi escolhido pela Organização Mundial de Saúde (OMS) como parte de uma seleção mundial para incentivar a criação de imunizantes com o RNAm. Além de também desenvolver uma nova vacina para a Covid-19 com a tecnologia, o instituto pesquisa terapias para câncer e prevenção de outras doenças.

“Nós estávamos trabalhando com tecnologia de RNAm por alguns anos, principalmente focado em vacinas terapêuticas para o tratamento do câncer, mas com a pandemia passamos também a desenvolver nossa própria vacina para a Covid-19 de RNAm, que está em testes.

Essa tecnologia estava em estudos há décadas, mas deu esse salto com a crise sanitária e se mostrou de fato muito eficaz. Agora esperamos que vamos ter resultados positivos semelhantes com outras doenças”, afirma o vice-diretor de Desenvolvimento Tecnológico de Bio-Manguinhos, Sotiris Missailidis.

ATUAÇÃO

As altas expectativas que envolvem o RNA mensageiro se dão por alguns fatores. O primeiro deles é a forma de atuação. Basicamente, trata-se de um código com instruções para que as células do corpo produzam determinada proteína.

No caso das vacinas da Covid-19, em vez de o imunizante introduzir o vírus inativado ou uma parte dele para que o sistema imunológico produza as defesas, o RNAm utiliza o próprio organismo como “fábrica” da proteína S do coronavírus, que então é lida pelo corpo para produzir as células de defesa e anticorpos.

“Sem dúvida o RNAm revolucionou a vacinologia, porque você consegue através de um código levar o indivíduo que recebe a vacina a produzir a própria proteína. Isso é uma revolução porque permite que produzamos proteínas contra qualquer coisa, então anticorpos contra alguma doença, proteínas que inviabilizam tumores, doenças degenerativas.

Em teoria, a tecnologia é aplicável para diabetes, Alzheimer, câncer, não apenas doenças infecciosas. É uma esperança para muitas outras doenças que até então nós ou não temos vacina ou que precisamos de alternativas melhores”, explica o infectologista e diretor da Sociedade Brasileira de Imunizações (SBIm), Renato Kfouri.

Ele conta que, desde 1990, a plataforma é estudada, mas era considerada instável em testes. A situação mudou em 2005, quando uma equipe de pesquisadores americanos desenvolveu cápsulas de gordura, chamadas de lipossomos, que envolvem o RNAm e conseguem levá-lo integralmente ao organismo.

Um dos cientistas responsáveis pela descoberta escreveu inclusive um artigo na revista científica Nature Reviews Drug Discovery, em 2018, intitulado “Vacinas de RNAm - Uma nova era na vacinologia”, em que listou uma série de estudos com resultados promissores da tecnologia.

Doenças negligenciadas são foco na Fiocruz

Missailidis, da Fiocruz, destaca que, embora a produção de vacinas com a nova tecnologia esteja começando principalmente em países do exterior, eventualmente Bio-manguinhos pode se tornar autônomo na fabricação de terapias com RNAm.

“Nosso maior problema era ter a capacidade de desenvolver novas tecnologias sem depender dos Estados Unidos, da Europa, de países que normalmente chegam com os produtos primeiro e depois fazem uma transferência de tecnologia.

O esforço que estamos fazendo nesse momento é para mudar esse paradigma. E nós podemos usar o RNAm para doenças raras, doenças negligenciadas, que muitas vezes não são de interesse de grandes farmacêuticas, mas que a Fiocruz, como uma instituição pública, tem a missão de poder atender essa parte da população”, diz o vice-diretor de Desenvolvimento Tecnológico de Bio-manguinhos.

O novo imunizante da Fiocruz para a Covid-19 de RNAm, que deve começar os testes clínicos no início do ano que vem, tem ainda o diferencial de despertar a resposta imune não apenas com a proteína S do coronavírus, mas também a N. Segundo Sotiris, a segunda proteína é mais conservada, então espera-se que ofereça uma maior imunidade para proteger contra novas variantes.

Há também o desenvolvimento da tecnologia pelo Senai Cimatec, na Bahia, em parceria com a empresa HDT Bio Corp, dos Estados Unidos.

O infectologista e pesquisador-chefe da instituição, Roberto Badaró, que lidera a pesquisa, explica que a vacina de RNAm utiliza ainda uma nanopartícula inédita capaz de proteger a molécula e aumentar a absorção no organismo, e celebra o projeto como um passo importante para o domínio da plataforma no Brasil. “Hoje nós temos capacidade de fabricar essa vacina aqui no Brasil, nós incorporamos essa tecnologia lá no Senai Cimatec e estamos terminando os estudos de fase 1.

É uma revolução grande essa plataforma, então nós estamos muito animados que o Brasil vai ter uma participação competitiva no cenário internacional de uma vacina moderna”, afirma Badaró. Ele conta que há um imunizante com a tecnologia também em testes para leishmaniose, uma doença provocada por um protozoário e transmitida por mosquitos que, se não tratada, pode ser altamente fatal.

“São milhares de pessoas que adquirem leishmaniose no Brasil e na América Latina, que é uma doença desfigurante que, quando pega a mucosa nasal, destrói o nariz, sendo uma doença séria, mas que não tem muita atenção por ser tropical. Só que essa tecnologia irá nos ajudar a fazer várias outras vacinas contra outras doenças”, acrescenta o infectologista.

Badaró, do Senai Cimatec, conta que há ainda vacinas terapêuticas em desenvolvimento na instituição para câncer de mama, próstata e ovário, que devem ganhar fôlego após o fim dos testes com o imunizante para a Covid-19. O combate a tumores é de fato uma das grandes promessas para o avanço da tecnologia, explica o médico oncologista Ramon Andrade de Mello.

IMUNIZANTES EM TESTE

Além do amplo potencial, as vacinas de mRNA têm demonstrado eficácia superior aos modelos convencionais e têm um potencial para fabricação com menor custo. Isso porque, pela plataforma ser sintética, e não envolver vírus vivos, não exige, por exemplo, um laboratório de biossegurança.

Além disso, podem ser desenvolvidas e adaptadas de forma mais rápida, o que possibilitou que os imunizantes da Covid-19 tivessem os testes clínicos iniciados menos de seis meses após o Sars-CoV-2 ter sido descoberto na China, em 2019.

Um dos resultados mais aguardados para a nova geração de vacinas que começam a ser testadas é a do imunizante contra o HIV. Neste ano, a Moderna - farmacêutica criada com foco no RNAm e responsável por uma das vacinas da Covid-19 - deu início à fase 1 dos testes clínicos com algumas candidatas.

Estão também na primeira etapa os estudos com um imunizante para o Nipah henipavírus (NiV), patógeno altamente letal, originalmente de animais, que provoca surtos pontuais em humanos na Índia e em Bangladesh.

Porém, essas não devem ser as próximas a saírem do papel. O laboratório conduz ainda testes com uma vacina para o vírus da Zika, que já estão em fase 2, e para uma nova versão do imunizante contra o vírus Influenza, causador da gripe, que está na fase 3.

Há também estudos para versões conjuntas de vacina da gripe com a da Covid-19 e uma proteção para o vírus sincicial respiratório (VSR), microrganismo que causa um alto número de hospitalizações e óbitos em crianças pequenas e ainda não pode ser combatido com imunizantes.

A tecnologia de RNA mensageiro ajudou a combater o coronavírus e seu uso está em estudo para o combate a diversas outras doenças, com ótimas expectativas Foto: Irene Almeida - Diário do Pará

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