“Baculejo”. Para quem não está por dentro da linguagem das ruas, essa palavra pode parecer estranha e sem sentido, mas para quem a conhece, sabe o quanto o termo submete a pessoa a situações por vezes vexatórias. Usuários da maconha, erva, ganja, verdinha, ou como preferir denominar a substância, certamente já foram ou viram alguém ser “baculejado”. Para alguns deles, a decisão do STF sobre o uso recreativo da erva é um passo importante para pôr fim aos estigmas e às baculajantes abordagens da polícia.
Nesta quarta-feira (27), o Supremo Tribunal Federal (STF) fixou a diferenciação entre uso e tráfico encerrando uma discussão que começou há quase dez anos, em 2015. Hoje, o que diferencia o usuário de traficante é basicamente a quantidade de entorpecente que a pessoa carrega quando é flagrada em uma abordagem policial. Caso esteja com 40 gramas ou menos, é considerado usuário. Se passar dessa quantidade, aí sim, pode responder pelo crime de tráfico de drogas. Mas a decisão não é tão simples assim e, não, a maconha não está liberada no Brasil, embora esse seja um passo para início de discussões sobre tal possibilidade.
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Outros fatores são levados em consideração durante uma apreensão: uma pessoa com menos de 40 gramas da erva, por exemplo, pode ser enquadrada como traficante se houver provas que indiquem a comercialização, como a presença de balanças de precisão e anotações sobre possíveis clientes e vendas. Há ainda a chance de quem estiver com mais de 40 gramas ser considerado apenas como usuário. Tudo vai depender da autoridade policial na hora da abordagem e nos consequentes procedimentos legais cabíveis.
Confira um trecho da tese fixada pelo STF:
- Não comete infração penal quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, a substância cannabis sativa, sem prejuízo do reconhecimento da ilicitude extrapenal da conduta, com apreensão da droga e aplicação de sanções de advertência sobre os efeitos dela (artigo 28, I) e medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo (artigo 28, III);
- As sanções estabelecidas nos incisos I e III do artigo 28 da Lei 11.343/2006 serão aplicadas pelo juiz em procedimento de natureza não penal, sem nenhuma repercussão criminal para a conduta;
- Em se tratando de posse de cannabis para consumo pessoal, a autoridade policial apreenderá a substância e notificará o autor do fato para comparecer em juízo, sendo vedada a lavratura de auto de prisão em flagrante ou de termo circunstanciado.
O que os usuários pensam da decisão?
Será que essa mudança na lei trará efeitos benéficos para quem opta por usar a erva de forma recreativa? E o mais importante, será que pretos, pobres e favelados continuarão sendo presos por um sistema judicial que pune pela cor da pele e pelas cifras na conta bancária?
Para a psicóloga e usuária de maconha Laize Araujo, de 27 anos, a decisão muda bastante o cenário, sobretudo quando se fala em pessoas que são presas injustamente por tráfico. Um dos questionamentos importantes dela sobre o tema, é como a polícia vai se comportar a partir de agora.
Eu acredito que de fato foi um passo importante, principalmente, sobre o que diz respeito ao perfil das pessoas que são presas como traficantes, mas que são apenas usuárias, sabemos que homens jovens negros são os principais alvos dessa criminalização, que agora passa por um ‘respiro’ depois dessa aprovação, e é importante lembrar que essa medida não impede sanções administrativas sobre o usuário, o que, em outras palavras, continua submetendo o usuário ao vexatório. O que nós lançamos para esse novo cenário é entender como a polícia vai se comportar a partir de agora em relação aos tão conhecidos ‘baculejos’. Além disso, é importante ressaltar que as pessoas que fazem o uso da maconha para fins de saúde e cultivam a planta para conseguir mitigar e tratar sintomas, o que garante que elas consigam ter melhor procedência da matéria prima do seus tratamentos
Laize Araújo, PsicólogaJovens, pretos e periféricos
Um levantamento da Associação Brasileira de Jurimetria concluiu que jovens, negros e analfabetos são considerados traficantes com maior frequência, mesmo quando presos com quantidade de droga inferior à apreendida com pessoas acima dos 30 anos, brancas e com ensino superior. Esses dados inclusive foram usados como base na sustentação do voto do ministro do STF Alexandre de Moraes a favor da decisão tomada.
O geógrafo e músico de 30 anos, Heitor Corôa, já sentiu essa repressão policial por conta da classe social e cor da pele, mas não foi ele a vítima da vez, mas os amigos com quem ele estava no momento. O relato volta ao termo incomum utilizado no início desta matéria, o “baculejo”.
“Uma vez com um grupo de amigos sofreu uma repressão extremamente agressiva. Mas, como eu visualmente sou mais próximo de alguém de classe média, não sofri abordagens policiais, como [ocorreu com] boa parte dos meus amigos que fumam. Apesar de eu ser pardo, tenho uma condição financeira e familiar mais estruturada que a deles, então pra eles [policiais] como eu uso roupas, tênis e tenho celular melhor do que o deles e trabalho, eu sou menos visado numa situação de possível abordagem. Inclusive na situação que rolou a abordagem violenta eu não fui revistado”, contou.
Sobre a decisão do STF, Heitor considera um pequeno avanço para um cenário ainda complexo: "É um pequeno começo em um cenário que ainda é bem complexo. Não acredito que isso vá realmente ajudar a diminuir a repressão policial, porém já há um respaldo jurídico".
"Além disso, acredito que a quantidade aprovada inicialmente de 40 gramas é adequada, pois equivale, às vezes, ao consumo mensal de um usuário ou até mais do que isso. Dificilmente alguém enquadrado como usuário estaria andando à toa na rua com 40 gramas de maconha”, pontuou.
A ação relatada por Heitor começou quando a polícia desconfiou de uma amiga preta dele, enquanto estavam na mercearia Casa Primorosa, localizada na travessa Piedade com rua Ó de Almeida, no bairro do Reduto. O local fica próximo à Praça da República, onde usuários se reúnem para fumar a ganja.
"A abordagem aconteceu porque a polícia desconfiou que uma amiga preta, que estava com um rótulo de catuaba na mão, estava bolando um beck. Tanto que chamaram uma policial mulher para revistar as mulheres que estavam lá”, relembrou.
O que é legalizar a erva?
Quando questionada sobre o debate de uma possível legalização da maconha, Laize Araujo acredita que a pauta não tem uma figura que a pontue com frequência, mas a decisão do STF pode abrir caminhos para debates sobre o que é, de fato, legalizar. No entanto, a descriminalização é resultado de pressões populares sobre o “fracasso da guerra às drogas” no Brasil, ela acredita.
"Por um lado, isso com certeza impulsiona mais pessoas a quererem entender o que está acontecendo, e mais pessoas a se somarem e se apropriarem do que é a legalização da maconha. Por outro lado, acredito que ainda estamos longe de pensar na legalização juridicamente falando", reflete.
"Isso porque pensar na legalização significa regularizar um comércio interno, e eu, particularmente, ainda não vi nenhuma figura política pontuando algo nesse sentido. Parece que atende mais a um interesse pontual, resultado das pressões populares que já acontecem há um bom tempo no Brasil sobre o fracasso da guerra às drogas e quantas vidas inocentes ela ceifa", concluiu Laize, que além do uso recreativo, utiliza a erva para relaxar.