No primeiro dia de seu segundo mandato como presidente dos Estados Unidos, Donald Trump publicou um decreto proibindo a concessão automática de cidadania americana a filhos de imigrantes em situação irregular --uma das medidas mais polêmicas da série de ordens executivas assinadas pelo republicano na noite de segunda-feira (20).
O decreto, parte importante da investida de Trump contra imigrantes que deve ser pilar do novo governo, contraria abertamente a Constituição do país. Segundo especialistas, a décima quarta emenda é simples e clara: o texto diz que "todas as pessoas nascidas ou naturalizadas nos Estados Unidos, e sujeitas à sua jurisdição, são cidadãos dos Estados Unidos e do estado no qual residem".
Nesta terça-feira (21), ao menos 22 estados governados por democratas entraram na Justiça contra o governo federal para pedir a derrubada do decreto de Trump e o reconhecimento da validade da décima quarta emenda. O processo deve ser o início de uma longa batalha no Judiciário entre Casa Branca e estados e cidades favoráveis à proteção de imigrantes em situação irregular.
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De acordo com uma das ações, protocolada em uma corte federal em Washington, o decreto de Trump "negaria a cidadania americana a cerca de 150 mil pessoas todos os anos". Quase todos os estados com governadores democratas processaram o governo federal: Nova Jersey, Massachusetts, Califórnia, Nova York, Connecticut, Rhode Island, Michigan, Colorado, Delaware, Nevada, Havaí, Maryland, Maine, Minnesota, Novo México, Vermont, Wisconsin e Carolina do Norte.
Juristas ouvidos pela imprensa americana acreditam ser quase certo que os tribunais contrariem o presidente nesse caso e reafirmem que a décima quarta emenda vale para qualquer pessoa nascida nos EUA.
Entretanto, existe a possibilidade de que alguma corte simpática a Trump utilize uma interpretação minoritária, mas já aventada em alguns estados conservadores, para manter o decreto de pé: a de que filhos de imigrantes em situação irregular não estão sujeitos à jurisdição americana e, portanto, não têm direito à cidadania, como afirma o texto da décima quarta emenda.
Isso impediria essas pessoas de obter a cidadania dos EUA automaticamente após o nascimento. Defensores do decreto de Trump afirmam que a medida é importante porque a legislação atual incentiva a imigração. Críticos, por outro lado, apontam o risco de que as pessoas afetadas se tornem apátridas.
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Excluída essa interpretação minoritária, entretanto, é quase consenso entre juristas que o texto constitucional americano, assim como o do Brasil e de quase todos os países das Américas, garante cidadania a qualquer pessoa nascida em solo pátrio -princípio jurídico chamado de "jus soli", expressão em latim que significa "regra do solo".
Repercussão
No restante do mundo, entretanto, opera o chamado "jus sanguinis", ou a "regra do sangue": só tem direito à cidadania filhos de cidadãos do país, sejam eles nascidos em território nacional ou não. Em alguns lugares, como boa parte da Europa Ocidental, há exceções a essa regra.
No Reino Unido e na Alemanha, por exemplo, uma criança é automaticamente cidadã se um dos pais estiver há alguns anos no país de forma legal; há exceções parecidas em países como Portugal, Espanha e Irlanda. Na França, crianças nascidas em solo francês podem se tornar cidadãs a partir dos 13 anos de idade se residiram no país por mais de cinco anos; regras semelhantes existem na Itália e na Grécia.
A explicação para a diferença de legislação entre as Américas e o restante do mundo está na história do colonialismo e no desenvolvimento do nacionalismo ao redor do mundo no século 19. Nessa época, países europeus viram surgir movimentos a favor da criação de Estados nacionais para cada povo -ideia que levou à unificação da Itália e da Alemanha, por exemplo, e incentivou a dissolução do Império Austro-Húngaro ao fim da Primeira Guerra Mundial.
Dessa forma, uma nação passou a ser definida em muitos casos pela etnia e linguagem, e os países utilizaram o conceito de cidadania desenvolvido pelo Império Romano, definido pela identidade dos pais, para determinar quem seria parte da nova nação. Hoje, muitos países europeus modificaram essa interpretação restrita de cidadania.
Nas Américas, por outro lado, o desejo dos países recém-independentes de atrair imigrantes e forjar uma identidade nacional distinta das potências coloniais europeias incentivou a adoção de um conceito amplo de cidadania, não apenas restrito a um povo. Em alguns países, a adoção do "jus soli" também esteve relacionado à abolição da escravidão ao longo do século 19.
Nos Estados Unidos, o "jus soli" foi codificado na Constituição em 1868, quando a décima quarta emenda foi aprovada. Parte das chamadas "emendas da Guerra Civil", ela originalmente tinha o objetivo de garantir cidadania à população negra recém-liberta da escravidão no conflito -e, dessa forma, estendeu esse direito a qualquer pessoa nascida em território americano.