Marina Colasanti não escreveu só poemas, narrativas curtas, contos de fadas, crônicas, histórias infantis, traduções, ensaios e reportagens. Seus livros para crianças e adultos são feitos da mesma matéria dos clássicos —deles, transbordam desejos, ódios, manias, paixões, medos e ambiguidades. Neles, está escrita a alma humana.
Agora, nesta terça-feira, sua obra ficou completa. Uma das escritoras brasileiras mais premiadas e respeitadas mundialmente quando o assunto é literatura infantojuvenil, ela morreu aos 87 anos de complicações da doença de Parkinson, em sua casa, no Rio de Janeiro.
Filha de italianos, Colasanti nasceu em 1937 na África, mais especificamente em Asmara, capital da Eritreia. Seu pai, Manfredo, trabalhava para a Confederação das Indústrias, órgão controlado pelo governo fascista, e tinha atuado nas guerras coloniais da região, dominada por Roma desde o século 19. Depois, mudaram-se para Trípoli, na Líbia.
Até que a Segunda Guerra Mundial levou a família de volta à Itália. O avanço dos conflitos obrigava os Colasanti a se deslocar constantemente. Sem muitos amigos nem brinquedos, quando ainda era pequena, Marina ganhou dos pais uma coleção de livros. Nas palavras da escritora, aquilo foi um Cavalo de Troia.
Recém-alfabetizada, logo devorou "Pinóquio", contos dos irmãos Grimm e adaptações de obras como a "Odisseia", "Dom Quixote" e "Os Três Mosqueteiros". Leu também sobre as viagens de Marco Polo e narrativas repletas de sereias, ilhas perdidas, cavaleiros, gigantes, demônios e mitologias do mundo todo.
Histórias que nunca mais saíram de sua cabeça. E que viajaram com ela até o Brasil, em mais uma das mudanças da família, dessa vez em 1948, devido ao colapso da Europa e da derrota de Mussolini.
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No Rio de Janeiro, morou na mansão de sua tia-avó, a cantora lírica Gabriella Besanzoni, que era casada com o magnata Henrique Lage. Ali, onde atualmente é o parque Lage —local onde a escritora deve ser velada—, viveu com o irmão Arduíno, que mais tarde seria um dos precursores do surfe no Brasil.
Nessa época, Marina começou a estudar pintura, a frequentar a Escola Nacional de Belas Artes e a se especializar em gravura —atividade que nunca abandonou, tornando-se ilustradora de muitos de seus próprios livros.
Mas o caldo cultural e a mistura geopolítica, literária e artística acabaram se desviando das artes plásticas para desembocar no jornalismo. Rapidamente, ela se tornou redatora, editora e cronista do Jornal do Brasil. Foi um pulo até a estreia literária com "Eu Sozinha", em 1968.
Publicado durante o endurecimento da ditadura militar no Brasil, o livro é composto por crônicas autobiográficas que colocam a mulher e a solidão feminina no centro da narrativa. Como escreveu Millôr Fernandes na época, "Marina Colasanti reflete, em cada palavra deste seu livro, a complexidade de uma formação intelectual quase absurda".
Ao olhar a sua produção em perspectiva, é fácil hoje perceber que "Eu Sozinha" marca o início de um longo e pioneiro projeto literário feminista, numa época em que o feminismo ainda começava a ganhar contornos pelo mundo. Amiga de autoras como Clarice Lispector e Nélida Piñon, ela pôs a mulher no centro da escrita, sem cair nas armadilhas do proselitismo e da redução didática.
É o que se vê no poema "Sexta-Feira à Noite", por exemplo, que começa com: "Sexta-feira à noite/ os homens acariciam o clitóris das esposas/ com dedos molhados de saliva./ O mesmo gesto com que todos os dias/ contam dinheiro papéis documentos".
Mas talvez a parte mais revolucionária de sua obra seja também a mais conhecida —aquela para crianças e jovens. Para isso, é preciso voltar ao jornalismo. Colasanti trabalhou em diversas publicações, como o Jornal dos Sports e as revistas Manchete, Senhor, Claudia e Nova. Mas foi no Jornal do Brasil que editou um suplemento fundamental: o caderno infantil.
Esse contato com a infância incentivou um mergulho no oceano caudaloso e infindável dos contos de fadas e fez com que ela relembrasse aqueles livros de quando era criança.
Colasanti chacoalhou a literatura infantojuvenil brasileira ao virar as costas para os recontos açucarados e comerciais de Walt Disney e olhar com atenção os originais de autores como irmãos Grimm, La Fontaine, Perrault e outros.
A partir dessa fonte e de mais narrativas clássicas, passou a escrever histórias novas. Foi assim que, em 1979, publicou "Uma Ideia Toda Azul", que rapidamente virou um marco.
Os dez contos falam de reis, rainhas, princesas, príncipes e criaturas como unicórnios, gnomos e fadas, que desfilam por bosques, castelos e reinos. Se, por um lado, eles aproximam a criança brasileira dessa geografia fantástica e ancestral, por outro fogem das morais didáticas e educativas que se multiplicam até hoje para essa faixa etária. Para a autora, um texto para crianças não precisa ensinar nada.
"A literatura infantil é entendida como um sanduíche ou uma cápsula que carrega dentro de si conhecimentos ou princípios morais", dizia. "Isso envenena a literatura. As grandes obras para esse público são grandes porque escapam disso."
Foi essa ideia, aliada a um profundo respeito pela inteligência da criança, que norteou seus livros. Além de "Uma Ideia Toda Azul", se destacam "Doze Reis e a Moça no Labirinto do Vento", de 1982, "Entre a Espada e a Rosa", de 1992, "Ana Z, Aonde Vai Você?", de 1993, "A Moça Tecelã", de 2004, "Classificados e nem Tanto", de 2010, entre vários outros.
Isso também ajuda a explicar as dezenas de prêmios. Foram mais de 20 troféus da FNLIJ, a Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil, e quase uma dezena de Jabutis —entre eles, o de melhor lançamento de ficção de 2014, com o infantojuvenil "Breve História de um Pequeno Amor", no qual narra a sua relação com um filhote de pombo.
Em 2023, recebeu o prêmio Machado de Assis, da Academia Brasileira de Letras, pelo conjunto da obra. No ano seguinte, ocupou o posto de personalidade literária do Prêmio Jabuti, e enviou à cerimônia um tocante depoimento em vídeo.
Reconhecida internacionalmente, venceu o Concurso Latinoamericano de Cuentos para Niños, da Unicef, o Prêmio Norma de Literatura Infantil e Juvenil, o Prêmio Iberoamericano SM e ficou em terceiro lugar no Portugal Telecom de 2011, que hoje é chamado de Prêmio Oceanos. Foi também finalista do Hans Christian Andersen, considerado o Nobel de Literatura para esse público.
Ao lado de nomes como Ana Maria Machado e Lygia Bojunga, Colasanti foi um dos rostos do livro infantil brasileiro e referência da produção nacional fora do país.
"Seus contos, repletos de princesas e cavaleiros, castelos e bosques mágicos, monges e sábios, levam-nos a acreditar que Marina escreve contos de fadas para crianças", afirmou a colombiana Silvia Castrillón, que foi consultora da Unesco, em uma das indicações da autora ao Andersen. "Mas a verdade é que, utilizando esses traços clássicos, a sua obra dirige-se à alma humana."
Essa universalidade sofreu alguns baques pessoais, principalmente a partir de 2020. A pandemia de Covid, o agravamento do quadro de Alzheimer de seu marido, o também escritor Affonso Romano de Sant’Anna, e a morte precoce de uma das filhas, Fabiana, tornaram a escritora mais reclusa.
Marina Colasanti deixa a filha Alessandra e o neto Nuno, além de sobrinhos. Também ficam órfãos uma legião de cavaleiros, reis, rainhas, bruxos e leitores do mundo inteiro, que sentirão falta de sua literatura contundente, fervilhante e sempre elegante.