Um navio considerado o mais moderno de sua época, com a mais avançada tecnologia disponível, considerado inafundável e com a possibilidade de chegar antes do dia previsto em seu destino. No comecinho do século XX, o burburinho era internacional com o Titanic, maior projeto de navio já construído até então. Antes, seus irmãos Oceanic e Olimpic eram os majestosos da época. Sim, o Royal Mail Steamer (RMS) Titanic foi o terceiro maior navio construído pela empresa White Star Line.
3.800 metros abaixo da superfície e a 700 km de distância da costa do Canadá, na direção da província de Newfoundland, descansam os destroços de uma das maiores tragédias marítimas que o mundo já viu. 111 anos já se passaram desde quando o Titanic se partiu em dois e afundou, mas sua memória parece estar eternamente viva no imaginário popular.
A recente busca pelo submersível que desapareceu em uma exploração turística, deixando cinco mortos, reacendeu o fascínio pelo navio "inafundável". Mas, afinal de contas, por que não conseguimos deixar o Titanic "descansar"?
É certo que James Cameron tem uma parcela de culpa nessa história. Afinal, seu filme vencedor de 11 Oscar eternizou discussões como "se Jack cabia ou não na porta", e é o responsável pelo túmulo de um tripulante do navio chamado J. Dawson (que não tem relação alguma com o Jack Dawson de DiCaprio) ser o mais visitado de um cemitério na Irlanda.
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O cinema tem uma atração justificável por tragédias — afinal de contas, todas as histórias precisam de um conflito, e uma catástrofe costuma ser uma saída fácil. Considerando todas as variáveis envolvidas no naufrágio do Titanic, há um campo fértil para se dramatizar, especular e investigar as histórias dos tripulantes, das vítimas e dos sobreviventes.
Antes do sucesso de James Cameron, a história do Tictanic já havia sido contada em Hollywood, mas não com o drama e o romance inserido de modo fictício entre Jack e Rose no filme de 1997. "Somente Deus por Testemunha", contou a história do naufrágio do navio em 1958 pelo diretor Roy Ward Baker. Após isso "S.O.S. Titanic" de 1979, também abordou o fato pelo olhar do diretor William Hale.
Tudo parece narrativamente bem construído. Era a primeira viagem de um navio que demorou dois anos para ser construído e era anunciado como "impossível de ser afundado". Em 1912, o RMS Titanic representava o ápice tecnológico de embarcações marítimas, e levava membros da alta classe, celebridades, oficiais de alta patente, industrialistas famosos.
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O fato de o navio ter demorado cerca de 2h40min para afundar desde o momento da colisão com o iceberg também cria narrativas que adicionam pitadas de drama ao que já é dramático o suficiente. É justamente esse tempo que deu a James Cameron a possibilidade de criar um clima de tensão tão poderoso em sua premiada obra.
Adicione aí a atitude dos músicos que ficaram tocando até o fim e o fato de ter acontecido em um momento moderno o suficiente para haver documentação e as notícias terem sido quase imediatas —cerca de 1.500 mortos e 700 sobreviventes. Pronto, temos a receita completa para um marco que, mais de 100 anos depois, ainda deixou muito a ser contado.
"O Titanic tem um grande valor mítico e metafórico na consciência humana (...) Você precisa pensar no Titanic em termos de um filme ou um romance -- alguma coisa que toca as emoções das pessoas. Destroços são histórias humanas. Eles nos ensinam alguma coisa sobre nós mesmos. Um destroço é uma janela fantástica para o passado" - James Cameron, em 2005, em entrevista ao The Independent.
É um dos poucos desastres que tiveram tempo para desenvolver o drama completo das escolhas humanas", disse para o Washington Post o professor Stephen Cox. "Normalmente se um navio vai afundar, ele afunda rapidamente. O Titanic levou 2 horas e 40 minutos, é tão longo quanto uma peça de Shakespeare.".
Há o adicional do caos incontrolável da natureza que parece pregar uma peça irônica e servir como um desafio para as construções humanas. Mesmo representando o que havia de maior e melhor em tecnologia, o navio não foi páreo para um gigantesco bloco de gelo. "Nós controlamos tantas coisas do mundo, mas em um nível fundamental, humanos são vulneráveis às forças da natureza", escreveu John Geiger em 2012 para o The Globe.
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"O fato de não ter sido um plano humano sinistro, mas um rolo-compressor plácido, um mero iceberg, que foi o grande vilão, é central para o terror dessa perda", completa.
Há de não se perder de vista também que a divisão de classes foi essencial para definir quem morreria e quem viveria — os botes salva-vidas colocados apenas na primeira e na segunda classes escancararam a divisão elitista que fez com que mais mulheres e crianças da terceira classe estivessem entre as vítimas.
É exatamente essa separação, explorada pelo filme de James Cameron, que mostra o quanto as estruturas sociais estavam presentes e mostravam uma divisão de mundo que, ainda que nunca tenha deixado de existir, era escancarada de uma forma grotesca em um velho mundo à beira da Primeira Guerra Mundial.
Entre livros, páginas de fãs, quebra-cabeças e milhares de histórias contadas e recuperadas desde que o local dos destroços foi encontrado em 1985, o fascínio existe por muitos motivos. No fundo do mar, é como se o que restou do navio fosse um momento congelado no tempo, que se recusa a ser transformado pelas mãos do homem. Há muitos outros acidentes, naufrágios e sumiços de navios mais misteriosos e letais que o Titanic, mas poucos são tão simbólicos como este.
"As pessoas dizem que não é relevante porque a estrutura de classe daquele tempo não existe mais, mas ela realmente existe", continua Cameron. "Compare a forma como vivemos no Oeste e como as pessoas vivem em locais como a África ou a Indonésia. Ainda há a primeira classe e a terceira classe. Estamos vivendo em um grande e esférico Titanic azul.". (Laysa Zanetti, Splash)