Cruzei com ela por aí depois de adulto algumas vezes. Numa dessas, não resisti. Estávamos numa praia, o sol de rachar. Eu, turista. Ela, artista. Altiva, concentrada, miúda, igual como há mais de 30 anos. Os olhos grandes e inteligentes de sempre, o sotaque de mil lugares que andou, as mãos ágeis, os cabelos crespos e curtos já com os vestígios dos anos. Não me percebeu, enquanto arrumava a banquinha e me sorriu como se eu fosse um cliente.
Embaixo de um chapéu e por trás dos óculos de sol disse um oi tímido para voltar no tempo em duas letras. Estávamos em Alter do chão, Santarém. Eu, longe de casa. Ela, em seu habitat, que é qualquer lugar. De passagem, ambos.
Lucinha era um orgulho, uma heroína.
Sagaz, audaz, pra frente, vivaz, pura juventude pós-abertura democrática. Promovia festas ruidosas quando dona Maria, a mãe, não estava em casa. O bom e velho rock das bandas daqui e as de fora dos anos 80, vinho barato e a turma. Muito moleque, eu só sabia à distância da rebeldia na Vila Primavera, a duas casas do Beco do Arreia-calça, acesso rápido para a Alferes Costa.
Quase como uma foto manchada, um vidro embaçado pelo vapor, recordo de uma conversa no quintal dela com duas tias minhas e dois vizinhos. Um cigarro barato aceso, clandestino e subversivo, naquele escuro mal luzindo os papos sobre paqueras, música, escola. Zanzava entre eles, encolhido, como um mascote.
Não demorou, Lucinha entrou na faculdade. Não só uma, mas duas. A primeira não tenho certeza. Talvez fosse um enfadonho curso de Administração. A segunda, sim. Era Geografia. Na Universidade Federal do Pará, um lugar que eu nem sonhava onde era. Só sabia que era importante. Parece pouco, porque hoje a educação, ainda que difícil para muitos, já é mais acessível. Na para época foi um feito, um matar o gigante com uma baladeira. Todo mundo ficou boquiaberto. Uma negra, moradora da Pedreira e filha de pobre passou no vestibular.
Ela era foda.
Depois de surpreender a todos, repetiu a dose com uma nova invenção. Nas fofocas da rua, logo circulou que a menina desistiu de tudo e foi ver o mundo. Cansou das rodinhas de amigos, das festinhas americanas e do papo de futuro. Professora? Geógrafa? Acadêmica? Nada. Cagou pra tudo e foi viver como quis, longe dali. Viver, enfim, da sua arte. Coragem para viver a vida que escolheu. Pé na estrada, on the road mundo afora, Kerouac. Virou hippie, diziam.
Mas me ensinou a ler antes de partir. As aulas particulares na acanhada sala da casa dela. A cartilha primeiro, aquela da professora branca, do professor branco e das crianças brancas na capa. Não éramos nós. Mostrava as letras isoladas em um furo improvisado numa folha de caderno e perguntava firme. Não havia como decorar pela ordem. Me forçava a aprender pela forma. Assim engoli o alfabeto, as sílabas e as palavras e também, às duras penas, a tabuada, com direito a disputa de bolos com Marquinho, Dezinho e Miriam, meus colegas mais velhos daquela classe modesta e mal iluminada da professora Lucinha.
E pensei que daquela minúscula turma, dos meninos eu era o único ainda vivo – os demais tombaram a tiros - e que também andei por aí, na poeira das ruas, como Lucinha, com minhas recusas, minha rebeldia, meus caminhos tortos, minhas escolhas, acumulando palavras desde aquelas primeiras, apreendendo as surpresas e lidando com as reviravoltas, e agora era um homem, solto por aí, não tão livre quanto ela. Éramos duas pedras soltas, que se encontraram, finalmente.
Lembra de mim?
Ela franziu a testa, deu meio sorriso, se demorou me olhando. Sinal de não, como eu imaginava.
Quanto tempo, pois é, quanto tempo.
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Anderson Araújo é escritor e jornalista da equipe do DOL. Escreve às sextas.
A crônica de hoje foi publicada originalmente no blog do autor, o Daqui te Escrevo.
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