“Coisas são só coisas, servem só pra tropeçar. Tem seu brilho no começo, mas, se viro pelo avesso, são fardos pra carregar”. Quem diz numa canção é meu querido Chico César, mas nem concordo tanto. Algumas excedem a sina de serem meros objetos. São memórias empoeiradas quando guardadas em baús, se é que alguém ainda tem baús. Em um mundo cada vez mais digital, as coisas se dissolvem, tornam-se etéreas e impalpáveis no nosso Google Fotos em monturos de lixo digital, quando não ameaçam o planeta com uma hecatombe ambiental nas montanhas de rejeitos reais espalhadas por aí – estamos quase lá.

Algumas delas, as coisas, no entanto, se mantêm conosco, ainda que distantes, mesmo se já não existem, e nos rodeiam, nos tropeçam, nos detêm, nos obrigam, nos agarram, nos possuem, invertendo a lógica de proprietário e propriedade - não eras tu que tinhas tal coisa e não o contrário? Algumas delas contam e são as nossas histórias, num recorte muito específico: naquele lugar, naquele período, com esta ou aquelas pessoas, por causa desta ou daquela situação, deste ou daquele modo de viver.

Às vezes, Freud, um charuto é muito mais do que um charuto.

Mas nem fumo para falar de charutos e minhas coisas nos últimos anos foram ficando pelo caminho, quase que um atestado para que eu, todo gabado, me autointitulasse desapegado de bens materiais, com a boca cheia, cheio de si.

Que mentira!

Pelas minhas andanças nos últimos anos, deixei roupas, calçados, eletrodomésticos, móveis, livros, carro e uma casa inteira pela estrada. Não quis nem saber! Dane-se! O mundo é grande e quanto menor a mochila mais perna pra caminhar. Assim zanzei, sem muita bagagem, por umas duas dezenas de cidades e dez países com o triste e estressante cálculo, nesse meio tempo, de quase uma mudança de casa a cada seis meses, um recorde para quem nunca sequer sonhou em ser nômade.

Minha paragem mais longe, como dizem os portugueses, foi no Porto, um sonho feliz de cidade lusitana. Ao Norte da terrinha, luminosa e aberta, acanhada e úmida, fria e acolhedora, triste e irresistivelmente alegre com seu pôr-do-sol a alaranjar o Rio Douro, onde me embriaguei de incertezas sobre o que fazer com minha própria vida. Pelas contradições e ambiguidades, me apeguei a ela como se lá minha mãe tivesse me parido, tão ambíguo e cheio de contradições que sou.

Foi do Porto que João me mandou uma mensagem, me lembrando de minhas coisas. Coisas que ficaram para trás, como tantas outras coisas ao longo desses anos insanos pulando de galho em galho, macaco viajante inveterado que fui.

Era minha mala!

A mala que abandonei para fugir para o Brasil quando a pandemia deu uma rasteira em cheio nos portugueses e o Porto virou um insalubre ninho de covid-19, a caminhar (sem gerúndio) para situação semelhante ao que ocorreu na Itália e na Espanha naquele trágico ano. João me falou dela, da mala, como quem me pede para visitar um velho parente prestes a morrer.

Era o começo de 2020 e ninguém sabia direito como proceder diante da calamidade sanitária que se instalava no mundo com o novo vírus, mas meu instinto de sobrevivência apitou forte e me pus correr. Coloquei o que pude na bagagem e voltei às pressas para Belém do Pará entre aeroportos em pânico, risco de contaminação e até um morto no meu último voo antes de chegar na capital paraense – história completa que você pode ler aqui.

Uma mala cheia de tralhas ficou para trás e zanzou de casa em casa de amigos e quase amigos e conhecidos pelo Porto. Muito respeitosamente eles guardaram meus cacarecos como um tesouro perdido. O que havia no conteúdo daquela valise? Principalmente, minha esperança de retornar ao cais que eu amei por quase um ano e meio além-mar, mesmo com a rudeza dos gajos, com indiferença das raparigas, com a solidão nos fins de tarde na Foz, com a saudade do Brasil nas manhãs ensolaradas de autêntica primavera, nas noites tiritando com o ar gelado vindo com os ventos nórdicos pelo Atlântico.

Era uma mala cheia de casacos, calças, sapatos e camisolas (camisas mais grossas) para madrugadas de frio, como as que enfrentei ao chegar num janeiro que já vai longe, uns livros que carreguei inadvertidamente e até adereços de uma fantasia para o Dia das Bruxas – nem sei como explicar o braço decepado de borracha e minha máscara de Hannibal, do Silêncios dos Inocentes, caso alguém me pergunte. Tantas inutilidades que não soube como me desfazer na hora da partida. Ali havia meu cheiro, minhas mais puras intenções, meus sonhos modestos, reminiscências dos meus erros de imigrante.

João me enviou a mensagem carinhosa perguntando o que fazer com a tal mala, tão gentil, meu querido amigo do outro lado o oceano. Na hora, me surpreendi com a pergunta. Eram coisas, apenas coisas, mas não só. Como Drummond, sugeri em paráfrase, meio sem saber: “pôr fogo em tudo, inclusive em mim, ao menino de 1979, que chamavam anarquista”.

João me refutou. Não topou o ritual do fogo!

Ofereci a ele meus espólios dessa guerra perdida, a que sonhei vencer na última batalha chegando do Brasil, nada no bolso ou nas mãos (eu quero seguir vivendo!) para retomar, ó, pá, minha rotina de estrangeiro no meu Portinho com cheiro de mofo e de maresia, de quatro meses de sol forte para usar apenas bermudas, das alheiras baratas do Pingo Doce, dos vinhos da alegria nas noites que chegavam depois das 21h no verão.

- Domingo vejo o que tem na mala. – João me prometeu.

- Fechado, meu amigo. – Combinei.

E cá estou aqui, no meu Brasil pós-apocalíptico, vivo depois de tantas mortes de doença, bala ou vício, chorando um chorinho fino e sem graça por minha mala extraviada, que grita num canto qualquer a minha volta, que nem vai acontecer tão cedo, como quem espera do Dom Sebastião retornar da batalha de Alcácer-Quibir.

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Anderson Araújo é escritor e jornalista da equipe do DOL. Escreve às sextas.

Outas crônicas e contos você pode ler no blog do autor, o Daqui te Escrevo.

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Foto: Arte: Emerson coe e Thiago Sarame

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