Quase matei minha mãe do coração algumas vezes. Principalmente, se junto com outros infantes. Ainda guardo dimensões, cicatrizes e traumas desse dia fatídico em que uma serpente encantada e gigante devorou meus lábios num longo beijo de amor. Obviamente, nem tudo é verdade, como toda memória traumática com suas sublimações e remodelamentos.

Estávamos todos em casa. Rádio sintonizado na Rauland. Ouvíamos canções singelas da época, com letras sempre imprópria para os menores, e nos embalávamos na rede instalada na sala, por acaso a mesma que meu pai dormia à noite com sua mania de detestar camas. O embalo era nosso passatempo preferido, o mais alto possível com risco de cair, ter uma fratura e morrer e, ao mesmo tempo, gritar as musiquinhas até deixar os adultos doidos com vontade de nos matar. Eu fingia estar em um barco amazônico, cheio de jogadas pra lá e pra cá rumo à misteriosa Baía de Guajará.

Nesse dia, além de minhas irmãs e eu, Dani Baratinha estava engajada na cantoria vertiginosa da rede de meu pai, em nossa casa. Era uma vizinha da minha idade. Valente, esperta, de lindos olhos escuros e redondos com escleróticas adoráveis, sólida como um sonho, irritada como ganso. Ela já tinha dado uns tapas bem dados na minha cara em alguma briga besta, mas que eu nutria um crush absoluto nela (por onde anda Dani Baratinha?). Lá pelas dez da manhã começou um alvoroço na rua, precisamente, no fim das pontes de madeira, perto do canal.

É preciso explicar que conto sobre um bairro pré-macrodrenagem, muito antes da gentrificação, sem saneamento algum, da minha Pedreira das priscas eras, em uma capital antes da extinção dos dinossauros, um Brasil com cenário de orçamento mais baixo ainda do que o atual, no entanto com alguma ingenuidade. Um idílio paupérrimo, ainda que feliz, úmido, autêntico. Uma área sujeita às enchentes e costurada por estivas cheias de tábuas podres que dançavam quando corríamos por cima delas.

Nossa rua era assim. No fim passava um enorme canal, poluído por esgoto, onde hoje chamam de Canal do Pirajá, fronteira com o bairro da Sacramenta e território de guerra entre milícias e bandoleiros. Mas, na época de Ouro da pobreza dos nossos arrabaldes, era outro tipo de ocupação, muito mais lúdica e menos sanguinária.

Para aproveitar o curso d’água, os moleques usavam cascos de geladeiras velhas como canoas e pedaços de tábua feito remos para navegar naquele mar de bosta e marias-moles e explorar aquilo que há quatro séculos deve ter sido o caminho líquido dos nossos ancestrais tapuias e tupinambás. Apesar dos perigos, até onde eu sei, ninguém morria, ainda que os olhos vivessem amarelos, a pele sem vivacidade, a barriga grande da esquistossomose e as idas frequentes no Centro 3, ali na Pedro Miranda.

Era um sábado, acho, porque estávamos de manhã em casa. Lá fora, os navegadores estavam em meio ao capim e à merda, comandados pelo Sandro, um adolescente forte com uma cor meio encardida, um mullet aloirado, queixo de gaveta e uma marra que eu nunca tive. Ele falava com as pessoas como se desafiasse a todos e tinha uma musculatura de estátua grega que poria inveja em qualquer crossfiteiro de agora. Parecia pronto pra briga a qualquer hora. Era uma criança enfezada, um cão com hidrofobia preparado para o ataque.

Naquele dia, se espalhou na rua, como fogo em rastilho de pólvora, que Sandro e sua gangue capturaram uma sucuri ou uma jiboia ou a própria Cobra Grande ou ainda a serpente que seduziu Eva no Éden.

Sei que as notícias se disseminaram velozes, como se, naquela época, a Internet já fosse a grande aliada da comunicação instantânea, embora naquele pedaço de mundo quase ninguém tivesse nem um telefone em casa e o orelhão mais próximo estivesse a uns cinco quilômetros. Na rede analógica das fofocas suburbanas, porém cada um queria espalhar sua versão e, de boca em boca, o tamanho da bicha aumentava, em média, uns meio metro a cada vez que alguém mencionava a história.

Na hora que a fábula nos alcançou, o monstro já era maior do que um Vileta, o ônibus da única linha que passava pela Avenida Marquês de Herval, ainda sem asfalto à época e cheia de casas compridas feitas de pau a pique.

Fiquei curioso, naturalmente. Não era todo dia que um animal mitológico era capturado, muito menos na rua da minha casa, tampouco com a chance de nós, crianças, vermos de perto e sem pagar nada. Coisa parecida só se achava no Museu Goeldi nas belas tardes de domingo em que íamos com minha mãe ter com os bichos. Coisa rara, a propósito.

Como eu era sonso e covarde, foi Dani Baratinha, a desbravadora, que deu a ideia: vamos ver! Vamoooo! Eeeeeeeê!, berramos. Eu tinha uns sete anos, minhas irmãs três. Saímos os quatro rumo ao canal. Era verão e a rua estava seca, sem alagamentos. Chegamos ao destino já de olhos espichados pra tentar ver o monstro de longe. Foi quando me decepcionei: era só um muçum, que não tinha nem um metro de comprimento. Sandro matou e ficou exibindo o bicho na ponta de um cabo de vassoura com uma plateia ao redor numa algazarra insana.

Quando nos viram, crianças menores, Sandro e a gangue da cobra começaram a botar medo na gente e vir na nossa direção. Dani e minhas irmãs saíram em disparada e eu, burro, sem muito jeito, fiquei pra trás. Só quando o risco foi real que corri. E caí. Caí como eu sempre caia e até hoje meu equilíbrio é precário. Para mim, era uma fase de mudar os dentes. Estava banguela em vários pontos da gengiva e, na queda, um dos incisivos em crescimento furou meu lábio inferior, onde até hoje tenho uma pequena cicatriz desse dia.

Ao avistar o sangue espalhado do meu queixo, Sandro parou a perseguição ao ver que o negócio deu merda. Levantei já em prantos, muito por causa do ferimento e menos pela dor, e fui pra casa, ensanguentado, como uma criança refugiada de guerra. Dani Baratinha se desesperou mais ainda ao perceber meu ferimento e foi chamar minha mãe aos berros já com a seguinte informação:

COBRA VENOSA MORDE MENINO LERDO NA BOCA

Que pulmões, Dani Baratinha! Que pulmões!

Era uma manchete e tanto, mas uma evidente fake news.

Como se sabe, muçuns são peixes de água doce, não répteis. E não são peçonhentos. A única verdade era sobre a criança mencionada. Essa, sim, agraciada com toda lerdeza do mundo.

Havia sido um beijo fatal da fera bíblica capturada no grande rio que passou na nossa infância. Como ela chegou a essa conclusão não sei, mas chegou.

Ao ouvir tal tragédia digna das narrativas gregas sobre a hedionda hidra, minha mãe largou as panelas na cozinha e, em uma piscadela, encontrou o filho no meio da rua. O mundo contornou a pobre dona de casa com as mãos ainda molhadas da louça na pia e a barriga respingada da boia em preparação no fogão. Quase teve uma parada cardíaca, a coitada. Até me levarem para casa, eu parar de chorar e explicar que eu apenas caí, sem nenhuma mordida de serpente nem necessidade de soro antiofídico, mamãe já pranteava o primogênito morto de forma tão trágica: mordedura de boitatá.

Fiquei um tempo sem sair à rua nem ir pra perto do canal, o que me salvou de tragédias piores numa cidade que, a cada ano, foi mergulhando no caos e na guerra urbana com muitas baixas de conhecidos meus poucos anos depois.

Por medo da morte, me mantive um bom menino, só que bem mais vigiado pela família, mas, que eu era um pequeno diabo, apesar da sonsice e da aparente tranquilidade, eu era. Disso ninguém pode duvidar.

Anderson Araújo é escritor e jornalista da equipe do DOL. Ele escreve às sextas-feiras.

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Foto: Arte: Emerson coe e Thiago Sarame

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