Era da vida que falávamos, justo ela, a bonita e imbricada e simples e antipática e cheia de reviravoltas, planos e nenhuma certeza, exceto uma. Era da vida, do que houve e não houve e do que haveria de ser ou, quem sabe, será. Nada muito profundo, como se falar da vida pudesse ter alguma profundidade, apesar do palavrório e interpretações. Uma insatisfação aqui, um vislumbre acolá, um arrependimento, um pouco de esperança e de contentamento, certa gratidão de mãos dada com as agonias de todo dia e o carro já estava deslizando no espelho d'água em direção de outro carro, num balé ensaiado, numa paixão industrial entre máquinas, no meio da Transamazônica.

- Meu deus, meu deus.

Não que eu abertamente quisesse morrer. Nem sempre se matar é algo consciente ou um acordo claro consigo mesmo. Há quem se mata de uma vez, há os que preferem aos poucos. Há quem pense em um tiro, mas também quem decida por métodos homeopáticos. Beber demais, fumar demais, cheirar demais e todos os excessos contíguos e disfarçados de prazer que a vida possa oferecer. Há quem dirija sem o menor cuidado em uma rodovia perigosa, não propositadamente, mas com o inconsciente berrando chega, chega, chega!, e o diabo no ombro repetindo que você já está bem cansado e é hora de parar. Não morrer, morrer, morrer exatamente, mas parar, ficar em suspensão, desligar-se. Porém, ás vezes, morrer é uma consequência necessária para, finalmente, descansar, cessar, desligar todas as funções - foi Saramago que me ensinou que a palavra defunto, em sua etimologia, significa sem função.

Obviamente, ninguém sequer pensava em morrer naquele dia.  

Era da vida que falávamos quando, por um átimo de segundo, ela escorregou, esta filha de uma puta.

Ou foi o carro?

Os pneus perderam a consistência e se deixaram levar num capotamento que não se confirmou. E o tempo se esticou o máximo que pode. Vi o espelho líquido se desfazer em gotas, estilhaçado, e o veículo brigar de foice com o asfalto enquanto o volante me forçava e, de súbito, me tornara seu amante, quase eterno. Vi a colisão também, outra previsão malograda, e os olhos dos dois homens no outro carro. Olhos de pedra diante do imponderável enquanto dançávamos na pista formando espirais já perdidos nos segundos, perdidos e entregues à própria vida.

- Meu Deus, meu Deus!

Dessa vez era Beto que dizia. Crente e gay e um dos grandes amigos que fiz por aí, comendo poeira e pedra junto aos bagos de feijão dos bandeijões dos refeitórios da peaõzada do chão de fábrica, anônimos nas firmas por aí. Em segundos, ele pôs para fora todo seu vocabulário evangélico e todo o fervor que sempre demonstrava em preces muito naturais.

Beto era um menino lindo, que nasceu com problemas nos pés e tinha uma enorme família que o esperava no Recanto das Emas, em Brasília, e um amor, que o aguardava todas as noites na casa pré-fabricada cedida pela empresa na qual trabalhávamos. Ele era fotógrafo e eu o adorava, como quem ama a um irmão recém chegado. Em todas as coisas que pensei naquele momento, também pensei no quanto era injusto aquele rapaz, bem mais moço do que eu, morrer ali, naquela estrada, junto com um colega de trabalho, quase sempre carrancudo, como eu. Ele merecia alguma glória e um fim mais digno.

Antes do rodopio, era da vida que falávamos e houve a interrupção da conversa e a suspensão. Máquina, água, estrada, árvores, distância, medo nenhum. Atado ao volante, o pé esquerdo no freio, a vida suspensa e acabou. Um silêncio, uma paz, medo nenhum, estranhamente, nenhum. E pensei: não houve filme, não houve revelação, não houve porra nenhuma, apenas o tempo estirado em camadas e o interesse honesto em acompanhar os fatos, como autor e personagem da cena.

Paramos. O motor respondeu na segunda batida da chave e carro venceu o mato ganhou a estrada de volta, sem nenhum arranhão depois de girar umas três vezes e se acomodar no acostamento, na beira do abismo. O tempo continuou em baile, música lenta, até pararmos. E olhamos aquele abismo e o abismo olhou pra nós de volta, como prometeu o filósofo. Mas, Beto e eu, dentro dos nossos uniformes de operários, respondemos não ao abismo. Naquele dia, a resposta era não.

 Os homens de olhos petrificados, que estavam no carro que quase se chocou com o nosso, deram ré, saíram do veículo mudos e nos olharam de novo, ainda horrorizados. Está tudo bem, coisas da vida, eu disse. Do outro lado da pista, do nada, um mototaxista roto com uma mulher alvíssima e de enormes e curiosos olhos verdes na garupa. Eles também nos apreciaram sem dizer palavra alguma, seguiram e sumiram na estrada como aparições que, de fato, eram.

Beto saiu do transe que é renascer depois de bater nas portas do céu – sim, se houver um céu, sei que meu amigo Beto estará nele quando se for, pelo seu bonito riso e sua fé inquebrantável. 

- Caralho, Meu Deus, estamos vivos.

Ele constatou, enquanto eu lentamente encostava no outro lado da pista para avaliar o estrago. Estava sereno, como sempre fico diante dos extremos que a vida me mostra. Minha audição reduz a quase surdez e percebo o mundo por trás de uma névoa. Beto me pediu para dirigir e eu cedi. Para ele, eu estava nervoso demais. Mal sabia que estava pleno e, finalmente, consciente do meu real estado. Às vezes, é preciso levar um solavanco pra se perceber vivo, ou melhor, merecer estar vivo.

- Não vamos falar nada. Vamos entregar carro pro gerente apenas. Bico calado.

- Por mim, ninguém sabe de nada.

E partimos para a usina, o coração acelerado, os problemas todos reacomodados, as esperanças repostas inteiras e as incertezas no mesmo lugar. 

Era da vida que falávamos e continuamos, como se nada houvesse acontecido, porque nada aconteceu.

 Anderson Araújo é escritor e jornalista da equipe do Dol. Ele escreve às sextas-feiras.

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Foto: Arte: Emerson coe e Thiago Sarame

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