Foi com uma mulher se sentindo desejável e desejada que essa conversa começou. Alguém achou que já estava demais. Sentir-se gostosa, tudo bem. Mas daí contar pra todo mundo já era demais. Quem ela pensa que é? A conversou correu no Twitter dias desses, iniciada com um comentário de um anônimo qualquer sobre a moça e, como num passe de mágica, estávamos nós, como faziam nossos antepassados antes da polarização e do agravamento da situação política do país, exercendo nosso inalienável direito de opinar sobre futilidades e vidas alheias. Ou, como prefiro dizer: dados ao desplante da prazerosa arte da fofoca.
Muito se disse, obviamente, lá pela rede social do passarinho. E já adianto: quem perdeu, perdeu, que essas discussões nascem e acabam tão rápido que é difícil retomá-las e, mais ainda, reproduzi-las. Não vamos reavivar a polêmica apenas para favorecer fofoqueiros retardatários – eles que lutem. Como sempre, houve quem fosse contra e quem fosse a favor, e ainda os que, muito pelo contrário, torciam meramente pela briga em si. Contudo, pelo que soube, foi realmente o primeiro sinal de que, a despeito de comunistas e patriotas, retomamos aos modos e costumes da nossa pequena vila de casas geminadas, com seus flagrantes ressentimentos.
Não que estivessem suspensos. Foram apenas deixados de lado momentaneamente – e, ainda assim, nem tanto, nem tanto.
Se houvesse onde solicitar ou lhe trouxesse alguma glória, Belém bem que poderia deixar de lado essa história de ser a Cidade das Mangueiras, mais raras a cada vendaval, para se tornar oficial e galhardamente a capital do ressentimento. O título que lhe recairia muito bem e traria à luz essa característica bem expressa na violência contida das nossas querelas menores, de porta a porta, de janela a janela, de arroba a arroba.
Distraída, de repente, não mais que de repente, Belém a qualquer hora vira palco do mais grosso ressentimento, esse afeto ao contrário para o qual muita gente daqui dá mais valor do que aos seus próprios projetos pessoais. Sem aviso, alguém lança veneno para ver se respinga no alvo previamente escolhido e acaba revelando a todos algo sobre si que acreditou poder esconder atrás da tentativa de ser irreverente às custas do outro. Nas horas e circunstâncias mais estranhas, a mentalidade que domina a cidade mostra seus dentes e garras nas fofoquinhas mais reles, seja em ataque direto, seja em julgamento ácido disfarçado de comentário ingênuo.
Por ser a cidade do “Já teve”, ou mais elegantemente, como diz o escritor e pesquisador Fábio Horácio-Castro, uma “Cidade Sebastiana”, o passado que se declara glorioso, longe da carência material e simbólica de hoje, coloca Belém numa faixa de energia muito baixa e obscura. A espera por voltar a ser e a ter - principalmente a ter - costura nosso azedume, nossa azia comunitária, fermentada por nossa sensação de decadência, baseada nesse passado mítico do que nunca foi ou de quem nunca teve, de fato, menos ainda chegou a ser.
Para o espírito coletivo, nossas promessas ficaram no ar, nada se concretizou, afinal. Tudo resultou inútil: não fomos a Paris na América, nem sequer chegamos a ser Metrópole da Amazônia, tampouco mantivemos nossa pretensa posição de mola propulsora da modernidade capitalista que tanto ansiava por nossa borracha no século passado. Ficaram os prédios e os paralelepípedos para jogar na nossa cara o que não chegamos a atingir como meta.
Em vez da grande festa, restou a ressaca. No lugar da opulência e do luxo, lidamos com ruínas e o lixo. Ao invés de Cidade Luz, o poste piscando a luz de mercúrio quase queimada mal iluminando o beco. Não sustentamos a vanguarda urbana que eles, os arautos da industrialização tardia, nos prometeram. Perdemos o bonde, o zepelim e a graça. Ficamos à espera e, como se sabe, quem espera sempre cansa.
Sem responder à nossa ansiedade pelo futuro, ficamos exaustos de ouvir: Belém parou no tempo.
A psicanalista Maria Rita Kehl, ao abordar ressentimento como sintoma social, em texto que pode ser lido aqui, explica que “ressentir-se significa atribuir ao outro a responsabilidade pelo que nos faz sofrer. Um outro a quem delegamos, em um momento anterior, o poder de decidir por nós, de modo a poder culpá-lo do que venha a fracassar.”.
Cito Maria Rita para tentar compreender nosso ressentimento coletivo. Um ressentimento baseado no que não conseguimos gritar coletivamente quando perdemos a primazia - se é que um dia ela existiu no mundo real, fora da narrativa de que estávamos predestinados ao eldorado com nossas ilusões extrativistas e perdulárias.
Nosso senso comum belenense tem um traço de síndrome de vira-lata, como se estivéssemos sempre atrás na corrida nacional entre as grandes e maravilhosas capitais da nação. Qualquer lugar é melhor, qualquer uma delas está em situação mais favorável, resolveu suas questões antes, encontrou soluções fáceis, baratas e exequíveis, perfeitamente executadas pelos governantes e assimiladas pela população. São Luís, logo ali, melhor! Manaus, aqui do lado, melhor! Fortaleza, a um passo, muito melhor!
No fundo, soluçamos em silêncio por uma igualdade geopolítica inatingível. Por que eles conseguem e nós não? Parece em muito com a birra do adolescente do filme da Sessão da Tarde, aquele que quer aniquilar a sua inferioridade, o desequilíbrio, a desvantagem, a fraqueza, a covardia, mas não tem, nunca tem, com quem reclamar, com quem se consolar. O que sobra é engolir o choro e a raiva e amargar a solidão.
Além do ostentador ciclo seringueiro, outros episódios nos emudeceram ao longo da história. Em alguns deles nosso ressentimento finalmente foi canalizado e se comutou em revolta. Chega! Não vamos mais permitir que o Brasil nos olhe de cima pra baixo! Menos ainda permitir que nem nos considere parte do Brasil! Mas a força, os poderes constituídos, nos aniquilou e calou nosso grito. A resistência em aderir ao Brasil independente, em 1822, e a nossa malograda guerra civil, a chamada Cabanagem, em 1835, são dois bons exemplos de que já explodimos de tanto ressentimento e o resultado foi a pior possível às nossas insurreições.
Estes e outros episódios agregam nossas frustrações coletiva e tendência para remoer e redirecionar mal nossos rancores, nosso ódio mal disfarçado, nosso ranço. Sem compreender muito bem a si e seus processos, Belém trata seu ressentimento no varejo, sem se implicar no atacado.
É como se vivêssemos entalados, prenhes de vingança, de maus sentimentos, de berros sufocados, sem saber para onde se deve jogar toda essa negatividade histórica.
Mas quem dera que só o passado incomodasse. O presente também não ajuda.
Desde 1912, com o último suspiro da Economia do látex e a falência das ricas famílias donas de seringais, a capital não teve uma nova e volumosa injeção de capital e esperança que a devolvesse à ilusão de relevância central ou lhe entregasse de volta o status de a mais emperiquitada cidade do Norte brasileiro, cheia de inovações e comportamentos pra frentex.
Restou-nos o empreguinho mediano; o carro comprado em parcelas a perder de vista que não garante liberdade nos infindáveis engarrafamentos cotidianos; o apartamento com a vista para baía tapada por outro prédio maior e mais bonito do que o nosso; o tédio das tardes assombrosamente quentes sem ar condicionado por causa da conta de luz nas alturas; a perda de relevância econômica para outros municípios paraenses mais ricos; a contenda de vizinhos de parede e o incômodo com a gostosa que se reconhece como extremamente gostosa e desejante no Twitter.
O disse-me-disse é nossa abstração mais fácil.
Nossa implicância atávica de cidadezinha, embora tenhamos porte e perregues das grandes, tem relação com o que não fomos e esperamos ainda, desejosos, inconfessavelmente desejosos, de ser grandes demais. Tão colossalmente grandes para que, quem sabe, um dia nossas mesquinharias provincianas sejam possíveis de serem escondidas debaixo do título de megalópole pós-moderna da Panamazônia globalizada.
Enquanto não acontece, nos ressentimos.
Guardamos antipatias gratuitas para a moça que conta as venturas dela nas redes; para o vizinho que venceu; para o colega de trabalho promovido; para quem largou a península para olhá-la de fora; ou, simplesmente, para quem se esqueceu do protocolo padrão da cidade e furou a crosta do ressentimento.
Esses são alvos preferidos desse ressentimento que está na atmosfera da cidade. Logo eles, os que rejeitam nosso esporte favorito e, sem outra alternativa, tentam viver a própria vida. Viver de verdade, não apenas existir ou sobreviver, na nossa pequena e ruidosa aldeia, onde o gostoso mesmo é ver o outro não prosperar ou gozar de escandalosa infelicidade pública.